Romance
ou aula de literatura?
O
que é mais importante em uma obra de ficção (não importa se
conto, novela, peça teatral, roteiro de cinema ou, e principalmente,
romance): o enredo, ou seja, a história em si ou os personagens que
a povoam? Não vale dizer que ambos, o que seria uma resposta
demasiado simplista e óbvia. Afinal, queiram ou não, uma das duas
características prepondera sobre a outra, mesmo que ligeiramente.
Para
o escritor argentino Ricardo Piglia, os personagens são mais
importantes do que as histórias. São criados com base na
experiência de vida do autor, na observação das pessoas que
conheceu pessoalmente, ou de quem ouviu falar, ou sobre as quais leu,
não importa. São, pois, “retalhos”, com características de
diversas delas, condensadas em uma só. A perícia em juntar esses
“pedaços”, e com coerência e lógica, é que os torna
verossímeis e não grotescos Frankensteins, risco que os imperitos
correm a todo momento. Criar, em torno desses personagens, situações
e circunstâncias, é o de menos.
Concordo,
portanto, plenamente com Piglia. Ademais, quem sou eu para
discordar?! O escritor argentino, meu contemporâneo (é de 1941, ou
seja, somente dois anos mais velho do que eu), é um dos mais
criativos, originais e, sobretudo, polêmicos da atualidade. Seus
textos, livros ou simples ensaios esparsos, induzem-me
invariavelmente à reflexão. Nem todos os escritores conseguem isso.
Óbvio que nem sempre concordo com suas colocações. Mas as
discordâncias são escassas e em questões secundárias, marginais,
e não no essencial.
Ricardo
Emílio Piglia Renzi esteve tempos
atrás no Brasil, mais
especificamente, em novembro de 2010, quando compareceu ao Festival
Literário Internacional de Pernambuco (Fliporto), onde esbanjou
inteligência, com opiniões fortes, corajosas e... polêmicas.
Por
exemplo, criticou o Prêmio Nobel de Literatura, Mário Vargas Llosa,
de quem disse que a última grande obra que produziu foi escrita em
1966. Elogiou o chileno Roberto Bolaño (falecido), afirmando que sua
originalidade e genialidade comprovam que a literatura
latino-americana não se restringe a Gabriel Garcia Marquez, como
muita gente ainda supõe. E não poupou elogios a Jorge Luís Borges
(meu guru literário) de quem “herdou” as principais
características.
Gosto
de Piglia e não li, ainda, nada do que escreveu que me levasse a
fazer lhe restrições. Pelo contrário, aprendo, e muito, em cada
livro dele que leio. Um dos que considero singulares (singularmente
genial), que me marcou sobremaneira, é o romance “A cidade
ausente”. Não que os outros fossem, ou sejam, de qualidade
inferior, longe disso. Mas esse livro, posto que de ficção, é, da
primeira à última página, magnífica aula de literatura. E
garanto-lhes que não estou exagerando. O autor revela opiniões que
poucos escritores teriam a coragem de manifestar. Faz de seus
personagens metáforas literárias, das mais ousadas e precisas.
Vejam,
por exemplo, o que Piglia diz, em determinado trecho, colocado na
boca de um tal de Russo: “A obra literária diz a verdade
mentindo”. E não é? Os personagens não são frutos da
imaginação, que o autor sugere que sejam reais, posto que não
sejam, aos quais confere o máximo de verossimilhança? E é pela
boca desses seres fictícios que transmite suas ideias
e opiniões. Portanto, finge mentir... mas não mente.
Esse
mesmo personagem, ou seja, Russo, observa, em outro trecho: “Um
relato não é outra coisa senão a reprodução da ordem do mundo,
numa escala puramente verbal. Uma réplica da vida, caso a vida fosse
feita só de palavras”. Ao término da leitura do romance, ficou-me
a sensação não de haver lido uma obra de ficção, mas de ter
assistido a uma aula de literatura, em que fica claro o papel do
escritor no mundo e fica mais clara ainda a importância da
literatura em nossa vida.
Valho-me
de uma análise da professora Shirley de Souza Gomes Carreira para
dar-lhes ideia
mais precisa do enredo de “A cidade ausente”, cuja leitura é de
tirar o fôlego. A mestra escreve: “O romance gira em torno de uma
máquina, reprodutora de relatos, cujas transmissões foram captadas
por Júnior, o protagonista, que trabalha na redação de um jornal.
Graças às transmissões, Júnior conseguia publicar as matérias
antes que os fatos se produzissem”.
O
romance foi estruturado como uma coletânea de contos, não escritos
por nenhum personagem e nem pelo autor, mas pela incrível “máquina”,
que tinha a faculdade do raciocínio. E esta é, como os personagens
(digamos, “humanos”) outra metáfora: a da escrita, do ato
criativo do escritor que narra, invariavelmente, o que já foi dito
por muitos outros, posto que com outras palavras, não raro até de
outro idioma, mas que são, ao fim e ao cabo, meras repetições,
disfarçadas de novidade.
E
o que vem a ser a tal e milagrosa máquina? Shirley de Souza Gomes
Carreira nos revela: “...O encontro da vida com a ficção é
insinuado por uma das personagens, Ana, quando esta observa que Elena
Obieta adoeceu. ‘Macedônio (Fernandez, personagem onipresente)
decidiu que a salvaria’. No romance, a derrota da morte se dá
através da construção de uma máquina que tendo armazenado os
dados que havia no cérebro de Elena, sua memória e seu
conhecimento, passa a gerar relatos virtuais”.
A
máquina é testada com um conto (celebérrimo) de Edgar Alan Poe,
“William Winston”, que trata da questão do “duplo”, ou seja,
de dois sósias absolutamente iguais e inidentificáveis, embora não
se tratem de gêmeos ou sequer de irmãos, que são como a imagem de
espelho um do outro. A máquina produz uma história com todos os
ingredientes da que foi escrita pelo norte-americano, posto que com
outras palavras, completamente diferentes das utilizadas por Edgar
Alan Poe. E o conto dela recebe título também diferente, para
caracterizá-la como original, como outra história e que, portanto,
não se trataria de plágio: “Stephen Stevensen”.
A
certa altura, Ricardo Piglia põe estas observações na boca de
outro dos personagem: “Grandes poetas deixam de sê-lo e se
transformam em nada e em vida veem
surgir outros clássicos (que também são esquecidos). Todas as
obras-primas duram o que dura a língua em que foram escritas. Só o
silêncio persiste, claro como a água, sempre igual a si mesmo”.
Por
essas e outras, ficou-me a sensação, ao cabo da leitura de “A
cidade ausente”, que não li propriamente um romance, instigante e
original, mas que fui brindado, de fato, (reitero) com uma magistral
aula de criatividade literária. E será que não fui?!
Boa
leitura!
O
Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
É obrigatório nos curvarmos diante da inteligência brilhante e criativa, além da coragem e ousadia.
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