Os “dois Paraísos”
O
poeta português Teixeira de Pascoaes escreveu, no poema “Paraísos”:
“Temos
dois paraísos: o da infância
e
o da velhice;
o
da flor e o do fruto;
o
da loucura e o da razão.
O
Jardim e o Pomar,
a
Primavera, deusa helênica,
o
Outono, deus da Ibéria.
O
resto é inverno até à Groenlândia
e
verão até o Cabo”.
“Como?”,
perguntará o sujeito cético e contestador, “classificar infância
e velhice como Paraísos?!!! Afinal, a criança e o idoso são dois
dos elos frágeis da corrente da vida!”. O contestador, óbvio,
estará coberto de razão. Isso, se atentarmos apenas para o aspecto
prático.
Todavia,
não estou defendendo nenhuma tese que me exija rigor científico.
Ademais, essas duas fases extremas da vida podem ser, realmente,
paradisíacas, dependendo das circunstâncias de cada pessoa. É
verdade que, nestes casos, elas seriam exceções. Esses dois pólos
opostos, via de regra, implicam em dependência, que varia de pessoas
para pessoa. Seus integrantes são os mais propensos a abandono. Daí
algumas sociedades mais evoluídas criarem estatutos para a proteção
tanto de crianças quanto de idosos.
Minha
pretensão, porém, não é a de abordar o aspecto realístico da
questão. Até porque, a realidade, fria, hedionda e lamentável, só
não conhece quem não quer. Basta estar atento, ser bem informado e
manter os olhos bem abertos para o que ocorre ao redor. Muitos,
porém, não se dão conta de que essas fases, com seus riscos e
vulnerabilidades, podem ser maravilhosas e inesquecíveis. São os
períodos da vida mais enfocados na literatura, que em última
análise é o tema de que me interessa tratar neste espaço,
notadamente na poesia. O poema de Pascoaes, portanto, não é o único
a ter essa abordagem otimista.
Dos
que se referem à infância, há tantos, que julgo desnecessário e
até redundante citá-los. Seria pensar mal do leitor, que certamente
conhece vários deles. Já os que abordam a velhice, não são em
tanta quantidade, mas ainda assim, inspirados e belos.
Um
deles, por exemplo, é este poema “Bem aventurança do idoso”, de
Ester May Walker:
“Bem
aventurados são aqueles que mostram
compreensão
quando meus passos são incertos e minha mão treme.
Bem
aventurados os que compreendem
que
meus ouvidos nem tudo podem ouvir.
Bem
aventurados aqueles que aceitam
que
não enxergo bem e não posso acompanhá-los.
Bem
aventurados aqueles que fingem
não
notar que entorno e sujo coisas na mesa.
Bem
aventurados aqueles que param um momento
para
bater um papinho comigo.
Bem
aventurados aqueles que dizem:
você
já contou isso…
Bem
aventurados aqueles que me deixam
contar
coisas do passado.
Bem
aventurados aqueles que me fazem
sentir
que me amam, que não estou sozinho.
Bem
aventurados aqueles que me respeitam
quando
tenho dificuldades em carregar a minha cruz.
Bem
aventurados os que me ajudam por sua bondade
a
encontrar o caminho para o Pai bondoso”.
Entendo
que envelhecer bem, com saúde física e principalmente mental, é,
além de grande ventura, uma arte, que nos convém cultivar desde
cedo. Manda a prudência que construamos vasta rede de afetos ao
nosso redor que nos serão úteis quando as forças minguarem e
precisarmos de todo o carinho e compreensão possíveis. Mas que
estes nos sejam ofertados não por eventual obrigação, mas por
genuíno afeto, por profundo amor. E este é cultivável, sem dúvida.
Devemos planejar a velhice de sorte a sermos os mais autossuficientes
possíveis. Não por questão somente de orgulho, mas por razões
puramente práticas. Isso é possível? Não sei. Presumo que sim,
baseado em exemplos que conheço.
Há
pessoas em idades bem avançadas que se bastam em todos os sentidos.
Quando amparadas, o são por afeto e desvelo de parentes e amigos e
nunca por premente necessidade ou por cumprimento de obrigações.
Claro que trato, apenas, de casos digamos “normais”, que não
envolvam doenças ou lares desagregados e destruídos pelas mais
diversas razões. Voltando à poesia, que é, de fato, o assunto
destas reflexões que, reitero, não se propõem a ser nenhuma tese
sociológica ou antropológica, encontrei este pequeno grande poema
de Mário Quintana, que traz sua peculiar visão da arte de
envelhecer, que diz:
“Antes,
todos os caminhos iam.
Agora,
todos os caminhos vêm.
A
casa é acolhedora,
os
livros poucos.
E
eu mesmo preparo
o
chá para os fantasmas”.
No
livro “Elogio à loucura”, Erasmo de Rotterdã traça, naquele
estilo irônico que o caracterizou e o tornou célebre (e perseguido
por poderosos desafetos) um paralelo entre a infância e a velhice,
entre a criança e o idoso, da seguinte maneira: “Os velhos
apreciam bastante a companhia das crianças, e estas a dos velhos,
pois os deuses gostam de unir os semelhantes. Realmente, se fizermos
abstração das rugas e do número de anos, próprios da velhice,
haverá dois seres que se assemelhem mais que o velho e a criança?”.
A
seguir, esse eminente encrenqueiro holandês apresenta algumas dessas
semelhanças: “Ambos têm cabelos brancos, boca sem dentes, corpo
flácido, ambos gostam de leite, ambos balbuciam, ambos falam sem
cessar; a tolice, o esquecimento, a indiscrição, tudo concorre para
estabelecer entre essas duas idades perfeita semelhança. Quanto mais
envelhecem os homens, tanto mais se passam a crianças, até o dia em
que abandonam o mundo, como verdadeiras crianças, sem aversão à
vida e sem perceber a morte”.
Claro que aí há muito de
exagero, mas também há muito de verdade. Prefiro, porém, encerrar
estas reflexões com poesia, e de primeiríssima qualidade. No poema
“Brinquedos de criança”, Mário Quintana encerra o assunto de
forma magistral e com chave de ouro:
“Recordo ainda... E nada
mais me importa…
Aqueles dias de uma luz tão
mansa
que me deixavam, sempre, de
lembrança,
algum brinquedo novo à
minha porta…
Mas veio um vento de
Desesperança
soprando cinzas pela noite
morta!
E eu pendurei na galharia
torta
todos os meus brinquedos de
criança…
Estrada afora após
segui...Mas, ai,
embora idade e senso eu
aparente,
não vos iluda o velho que
aqui vai:
eu quero os meus brinquedos
novamente!
Sou um pobre
menino...acreditai…
que envelheceu, um dia, de
repente!...”
Boa
leitura!
O
Editor.
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