sexta-feira, 6 de julho de 2018

Editorial - Os dois "Paraísos"


Os “dois Paraísos”


O poeta português Teixeira de Pascoaes escreveu, no poema “Paraísos”:

Temos dois paraísos: o da infância
e o da velhice;
o da flor e o do fruto;
o da loucura e o da razão.
O Jardim e o Pomar,
a Primavera, deusa helênica,
o Outono, deus da Ibéria.
O resto é inverno até à Groenlândia
e verão até o Cabo”.

Como?”, perguntará o sujeito cético e contestador, “classificar infância e velhice como Paraísos?!!! Afinal, a criança e o idoso são dois dos elos frágeis da corrente da vida!”. O contestador, óbvio, estará coberto de razão. Isso, se atentarmos apenas para o aspecto prático.

Todavia, não estou defendendo nenhuma tese que me exija rigor científico. Ademais, essas duas fases extremas da vida podem ser, realmente, paradisíacas, dependendo das circunstâncias de cada pessoa. É verdade que, nestes casos, elas seriam exceções. Esses dois pólos opostos, via de regra, implicam em dependência, que varia de pessoas para pessoa. Seus integrantes são os mais propensos a abandono. Daí algumas sociedades mais evoluídas criarem estatutos para a proteção tanto de crianças quanto de idosos.

Minha pretensão, porém, não é a de abordar o aspecto realístico da questão. Até porque, a realidade, fria, hedionda e lamentável, só não conhece quem não quer. Basta estar atento, ser bem informado e manter os olhos bem abertos para o que ocorre ao redor. Muitos, porém, não se dão conta de que essas fases, com seus riscos e vulnerabilidades, podem ser maravilhosas e inesquecíveis. São os períodos da vida mais enfocados na literatura, que em última análise é o tema de que me interessa tratar neste espaço, notadamente na poesia. O poema de Pascoaes, portanto, não é o único a ter essa abordagem otimista.

Dos que se referem à infância, há tantos, que julgo desnecessário e até redundante citá-los. Seria pensar mal do leitor, que certamente conhece vários deles. Já os que abordam a velhice, não são em tanta quantidade, mas ainda assim, inspirados e belos.

Um deles, por exemplo, é este poema “Bem aventurança do idoso”, de Ester May Walker:

Bem aventurados são aqueles que mostram
compreensão quando meus passos são incertos e minha mão treme.
Bem aventurados os que compreendem
que meus ouvidos nem tudo podem ouvir.
Bem aventurados aqueles que aceitam
que não enxergo bem e não posso acompanhá-los.
Bem aventurados aqueles que fingem
não notar que entorno e sujo coisas na mesa.
Bem aventurados aqueles que param um momento
para bater um papinho comigo.
Bem aventurados aqueles que dizem:
você já contou isso…
Bem aventurados aqueles que me deixam
contar coisas do passado.
Bem aventurados aqueles que me fazem
sentir que me amam, que não estou sozinho.
Bem aventurados aqueles que me respeitam
quando tenho dificuldades em carregar a minha cruz.
Bem aventurados os que me ajudam por sua bondade
a encontrar o caminho para o Pai bondoso”.

Entendo que envelhecer bem, com saúde física e principalmente mental, é, além de grande ventura, uma arte, que nos convém cultivar desde cedo. Manda a prudência que construamos vasta rede de afetos ao nosso redor que nos serão úteis quando as forças minguarem e precisarmos de todo o carinho e compreensão possíveis. Mas que estes nos sejam ofertados não por eventual obrigação, mas por genuíno afeto, por profundo amor. E este é cultivável, sem dúvida. Devemos planejar a velhice de sorte a sermos os mais autossuficientes possíveis. Não por questão somente de orgulho, mas por razões puramente práticas. Isso é possível? Não sei. Presumo que sim, baseado em exemplos que conheço.

Há pessoas em idades bem avançadas que se bastam em todos os sentidos. Quando amparadas, o são por afeto e desvelo de parentes e amigos e nunca por premente necessidade ou por cumprimento de obrigações. Claro que trato, apenas, de casos digamos “normais”, que não envolvam doenças ou lares desagregados e destruídos pelas mais diversas razões. Voltando à poesia, que é, de fato, o assunto destas reflexões que, reitero, não se propõem a ser nenhuma tese sociológica ou antropológica, encontrei este pequeno grande poema de Mário Quintana, que traz sua peculiar visão da arte de envelhecer, que diz:

Antes, todos os caminhos iam.
Agora, todos os caminhos vêm.
A casa é acolhedora,
os livros poucos.
E eu mesmo preparo
o chá para os fantasmas”.

No livro “Elogio à loucura”, Erasmo de Rotterdã traça, naquele estilo irônico que o caracterizou e o tornou célebre (e perseguido por poderosos desafetos) um paralelo entre a infância e a velhice, entre a criança e o idoso, da seguinte maneira: “Os velhos apreciam bastante a companhia das crianças, e estas a dos velhos, pois os deuses gostam de unir os semelhantes. Realmente, se fizermos abstração das rugas e do número de anos, próprios da velhice, haverá dois seres que se assemelhem mais que o velho e a criança?”.

A seguir, esse eminente encrenqueiro holandês apresenta algumas dessas semelhanças: “Ambos têm cabelos brancos, boca sem dentes, corpo flácido, ambos gostam de leite, ambos balbuciam, ambos falam sem cessar; a tolice, o esquecimento, a indiscrição, tudo concorre para estabelecer entre essas duas idades perfeita semelhança. Quanto mais envelhecem os homens, tanto mais se passam a crianças, até o dia em que abandonam o mundo, como verdadeiras crianças, sem aversão à vida e sem perceber a morte”.

Claro que aí há muito de exagero, mas também há muito de verdade. Prefiro, porém, encerrar estas reflexões com poesia, e de primeiríssima qualidade. No poema “Brinquedos de criança”, Mário Quintana encerra o assunto de forma magistral e com chave de ouro:

Recordo ainda... E nada mais me importa…
Aqueles dias de uma luz tão mansa
que me deixavam, sempre, de lembrança,
algum brinquedo novo à minha porta…

Mas veio um vento de Desesperança
soprando cinzas pela noite morta!
E eu pendurei na galharia torta
todos os meus brinquedos de criança…

Estrada afora após segui...Mas, ai,
embora idade e senso eu aparente,
não vos iluda o velho que aqui vai:

eu quero os meus brinquedos novamente!
Sou um pobre menino...acreditai…
que envelheceu, um dia, de repente!...”


Boa leitura!

O Editor.


Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk

Nenhum comentário:

Postar um comentário