quarta-feira, 11 de julho de 2018

"Desobediência" - Cloves Geraldo


“Desobediência”


* Por Cloves Geraldo

Delicadas relações


Com sensibilidade, cineasta argentino Sebastián Lelio trata das relações entre fotógrafa e amiga de infância numa comunidade judaica irlandesa.

Nem sempre os impasses amorosos levam a opções que deixem um rastro de culpa, perda ou vazio. Ainda mais se motivadas por razões que irão marcar a vida de quem fica para trás. Neste “Desobediência”, tratado com equilíbrio, suavidade e delicadeza pelo cineasta argentino, de origem chilena, Sebastián Lelio (08/03/21974), Ronit (Rachel Weisz) e Esti (Rachel McAdams) se defrontam com obstáculos à retomada de suas relações amorosas, depois anos de separação. E devem levar em conta as reações da vizinhança conservadora e da comunidade judaica irlandesa. 

Com estes eixos dramáticos, Lelio, acostumado a tratar da luta da mulher, como em “Glória” (2013), envereda para a paixão entre duas jovens judias. Ronit Krushka é a fotografa, radicada em Nova York, que acaba de perder o pai, respeitado rabino; Esti Kuperman é a dona de casa, sua ex-namorada, casada agora com seu primo, o jovem rabino Dovid Kuperman (Alessandro Nivola). As vidas de ambas são guiadas pelos preceitos e rituais judaicos. Ainda que a Comunidade Shalon de São Paulo seja pluralista, igualitária e inclusiva, as restrições aos casamentos entre lésbicas ou gays ainda persistem em Jerusalém e no interior de Israel.

Em vez de optar pelo recurso fácil da trama centrada nos choques de Dovid com elas, ameaças da família de Esti e perseguições da comunidade judaica conservadora às duas, Lelio e suas co
rroteiristas Naomi Alderman e Rebecca Lenkiewicz preferem encadear a narrativa em equilibradas sequências. Há nuances, furtivas vigilâncias e ligeiras menções depois de alguns vizinhos as flagrarem juntas, durante um passeio por local longe das movimentadas ruas. Nem Dovid, sabedor da relação anterior delas, reage como marido traído. Se limita a ignorar ou fazer algum comentário.

Vértices amorosos se equivalem

Se envolver diretamente implicaria em expor sua posição de conceituado rabino na comunidade e na Igreja Judaica. Qualquer escândalo bloquearia sua ascensão às altas posições. Forma-se, assim, um triângulo amoroso no qual os vértices se equivalem, porquanto Esti se alterna entre ele e Ronit. E elas ficam livres para seus encontros em hotéis, onde trocam ideias sobre a vida que teriam juntas em Nova York. Lelio constrói esta relação com delicadeza e sensibilidade. Há erotismo e paixão entre duas mulheres que se amam e não v
eem razão para ficarem longe uma da outra.

Contribui para este suave clima a iluminação e a fotografia de Danny Cohen e os enquadramentos de Lelio em estreitos espaços, como a cozinha, o corredor, a área do elevador, o canto do muro e a cama do hotel. Seus movimentos são sempre limitados, seja por evitarem se expor, seja pelas sutis e submersas pressões de Dovid ou o temor de serem penalizadas pela própria comunidade judaica a que pertencem. Esta sempre se mostra forte e impenetrável nas reuniões de família ou nos rituais na Igreja. É por meio dela que Dovid se vê fortalecido em suas ambições.

É ardilosa a forma como ele intervém para não se mostrar alheio à relação de Esti com Ronit. Sem irritação ou pressão, em fala mansa no canto da cozinha, ele indaga à companheira se elas estão juntas, ela confirma. Não significa que a paixão dele arrefeceu ou se sente traído. Ele mostrará a ambas o que isto representa para suas ambições, ainda que na sequência diante de sua família, dos rabinos e dos fiéis a lotar o templo, encerre o que seria sua ascensão na fechada estrutura da igreja Judaica. Ninguém presente à cerimônia entende o que o motivou, só Esti e Ronit.

Filme é cheio de nuances e reações

Trata-se, como se vê, de um filme cheio de nuances e reações ditadas não só por questões religiosas, mas por Dovid ser o passivo vértice de um triângulo amoroso. E na alta posição de Rabino, não poderia expor sua participação nele, a menos que a revelasse e rompesse com qualquer proibição da Igreja Judaica Ortodoxa. O espectador entende seu impasse, em momento algum ele se insurge ou rompe com Esti ou se opõe a Ronit. Apenas alega não ter o preparo necessário para tal posição. E elas entendem seu sacrifício, devido aos problemas que lhes acarretariam.

Lelio, a partir daí, monta um quebra-cabeça-narrativo no qual os personagens movem as peças às vezes se sacrificando outras ficando à espera de que o outro o faça. Não só devido ao triângulo amoroso, outro fator de grande importância para o casal Dovid/Esti leva Ronit a refletir. Dá-se o significativo diálogo entre elas: 
Ronit: Estou voltando para Nova York! Esti: É fácil ir embora, não é? Ronit: Não, não é. A cada instante, uma delas se decide de um jeito às vistas do impassível Dovid. Também ele torce para o desfecho que evite a continuidade do que o atormenta.

Toda essa situação deriva das tessituras da trama construída por Lelio e suas co
rroteiristas. Nenhum dos possíveis intervenientes, sejam a família de Esti ou de Dovid, a Igreja Judaica Ortodoxa ou a própria comunidade judaica se intromete na relação delas. Num trio amoroso a findar pela traição, rompimento ou opção de um vértice pelo outro, forma-se o casal e o outro se vai. Aqui a construção é outra. Lelio põe o espectador a torcer pelo inesperado, como se ele fosse decisivo para o fim do triângulo-amoroso e não para a formação do casal de lésbicas.

Impasses podem levar à culpa

De forma quase subliminar, Lelio e suas co
rroteiristas criam várias opções para o espectador escolher. Não são mais os agentes da pressão conservadora que influem nas escolhas dos personagens, mas algo para além do controle deles. Tanto Esti quanto Ronit, ao optarem pelo que surge no momento, terminam deixando Dovid de fora. Até a escolha dele faria o mesmo com qualquer uma delas. Cabe ao espectador decidir se Lelio não se acomodou à posição conservadora judaico-ocidental-cristã. Como se vê, as forçadas rupturas podem deixar um rastro de perda e vazio.


* Jornalista e cineasta.

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