Museu
Nacional: vida, morte,
ressurreição
*
Por José Ribamar Bessa Freire
“Se
esquecemos o passado, ele volta” (Spinoza).
Muitos
documentos históricos do Arquivo de Santa Cruz de la Sierra, na
Bolívia, foram destruídos porque a instituição não tinha verba
nem para comprar papel higiênico. Aí, quando seus funcionários
sentiam vontade de “descomer”, corriam ao banheiro e, no caminho,
arrancavam folha de livro raro ou de manuscrito antigo com a qual se
limpavam após “pintarem a porcelana” do vaso sanitário. Dito
assim, parece “folclore”, mas não é. Lévi-Strauss, que por lá
passou em 1938, copiou do quadro de avisos e publicou em “Tristes
Trópicos” o seguinte ato administrativo assinado pelo diretor:
“É
rigorosamente proibido arrancar páginas dos arquivos para uso
sanitário e higiene pessoal. Os infratores serão severamente
punidos”.
A
tentativa de salvar o acervo com ameaças não surte efeito. É
preciso mudar a política que reduz drasticamente o orçamento das
instituições culturais. As comparações já foram feitas pela
mídia. O orçamento contempla R$ 520 mil anuais para a
manutenção básica do Museu Nacional, menos do que a Câmara de
Deputados gasta anualmente para lavar seus 83 carros oficiais. Em
2018 o Museu já gastou R$ 268,4 mil, o equivalente ao que é
devorado em dois minutos – eu falei 2 minutos – pela máquina
judiciária no Brasil. Nesse sentido, o incêndio foi deliberado. Não
tem água que apague tal incúria.
Se
cortarem o papel higiênico do STF, por exemplo, folhas dos processos
arquivados vão desaparecer, o que provavelmente alegrará os
ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli, mas apagará para a
posteridade os delitos cometidos por Temer, Aécios, Jucás,
Maruns et
caterva.
A não ser que os ministros regiamente remunerados imitem o
desprendimento de funcionários de algumas universidades federais
que, com seus parcos salários, organizam mensalmente uma vaquinha
para suprir os sanitários com papel.
A
vaquinha comprova que essa forma lenta de destruir a memória de uma
nação nem sempre funciona. Mas há um método mais rápido e
infalível que elimina tudo de uma só tacada: o fogo. Basta reduzir
o orçamento das instituições nos itens de manutenção da rede
elétrica, sistema de prevenção de incêndios e outros
equipamentos. Tal política cultural de sucessivos governos causou
nos últimos dez anos incêndios em São Paulo que destruíram, entre
outros, o Memorial da América Latina, a Cinemateca Brasileira, o
Museu da Língua Portuguesa, e, no Rio, prédios da UFRJ: Palácio da
Praia Vermelha, Laboratório de Microbiologia, a própria Reitoria e,
agora, o Museu Nacional .
Morte
anunciada
-
O Museu vai pegar fogo - advertiu no dia 3 de novembro de 2004 seu
diretor Sérgio Alex Azevedo em entrevista à repórter Daisy
Nascimento da Agência Brasil, lembrando que um laudo de dezembro de
2003 identificara instalações elétricas inadequadas, infiltrações
e necessidade urgente de um sistema de combate a incêndio. Precisava
R$ 40 milhões para a reforma total do prédio, mas o MEC não
liberou a verba, muito inferior aos R$ 51.030.866,40 encontrados
depois pela Polícia Federal no bunker de Geddel Vieira. De lá para
cá, ano após ano, a situação só se agravou. Tratava-se da
crônica de uma morte anunciada.
Em
algumas horas, as chamas devoraram coleções de importância
internacional: a de paleontologia, com ossadas de animais
brasileiros pré-históricos, a de arqueologia, a egípcia, a
africana e a de arte indígena. Durante dois séculos, o Museu
Nacional organizou um acervo com mais de 20 milhões de itens,
salvaguardando patrimônio cultural da nação brasileira, da ciência
e do mundo. Salvou-se o acervo da Biblioteca Central, localizada em
outro prédio, mas queimaram 37 mil títulos, alguns deles obras
raras, da Biblioteca Francisca Keller do Setor de Antropologia
Social, uma das mais importantes nessa área.
O
valor de uma biblioteca universitária foi destacado por Theodor
Berchem, reitor da Universidade alemã de Wurzburg:
“Se
o mundo desaparecer, mas uma só universidade for poupada, a partir
dela e de seu acervo poderemos reconstruir uma grande parte do saber
atual”.
Efetivamente,
o Museu Nacional permitiu ressuscitar destruídas formas de vida. Foi
em sua reserva técnica que o índio Constantino Cupeatucu
fotografou, em 1989, antigo artefato tikuna da Coleção Nimuendaju,
levando a foto para a aldeia no Alto Solimões, quando então os
velhos lembraram como era o processo de confecção, o material
usado, seu significado. Aí sentiram necessidade de criá-lo e usá-lo
outra vez, o que foi feito.
Foi
assim que aconteceu o milagre. O Museu Nacional deu vida a algo que
permanecia morto e permitiu “resgatar
da tragédia uma mensagem de esperança e de autoestima”, como
observou James Clifford em relação a processo similar dos índios
Kwakiutl no Canadá. Um museu não é um mero acumulador de objetos,
mas um centro dinâmico, pulsante de vida, capaz de parir o novo, de
narrar histórias de luta e de vitalidade cultural. Ainda mais o
Museu Nacional que abriga cursos de pós-graduação e pesquisadores
renomados de reconhecimento internacional.
Quando
um Museu como o Nacional deixa de existir, quais saberes podemos
reconstruir? A pergunta foi feita nesta terça (4) em evento na
Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), Campo Grande (MS), na
apresentação do Centro de Documentação Indígena Antônio Brand
(CEDOC).
Na
mesa redonda compartilhada com Eliel Benites, Levi Marques e Adir
Casaro, a tragédia do Museu Nacional foi pranteada. Lembramos que
dos 12 mil documentos do CEDOC já catalogados, uma pequena
parte foi copiada do arquivo do Museu Nacional, cuja valiosa
documentação de línguas indígenas incluía o material coletado
por Curt Nimuendajú em quase 50 anos de trabalho de campo, o
original do seu mapa étnico-histórico-linguístico com a
localização das etnias do Brasil, o arquivo sonoro com gravações
de narrativas e cantos em algumas línguas que hoje não são mais
faladas e com o incêndio morreram pela segunda vez.
Objetos
feridos
O
linguista Aryon Rodrigues considera que a queima de arquivos de
línguas indígenas sepultam fenômenos raros ou únicos,
extremamente importantes para a melhor compreensão da linguagem e da
cognição humana. O historiador mexicano León-Portilla completa:
“Quando
morre uma língua se fecham a todos os povos do mundo uma janela, uma
porta, desaparecem discursos, preces, cantos, sombras de vozes
silenciadas para sempre: a humanidade se empobrece”.
Foi o que aconteceu. Todos ficamos irremediavelmente mais miseráveis.
-
As ruínas do Museu deveriam ser deixadas como estão como memória
dos mortos, das coisas mortas, dos povos mortos, dos arquivos mortos.
Eu não construiria nada naquele lugar que possa apagar o que
aconteceu. Gostaria que aquilo permanecesse em cinzas, em ruínas,
apenas com a fachada de pé. Um memorial lembrando o descaso de todos
os Governos, e desse Governo ilegítimo em particular, com cortes
dramáticos nos orçamentos da cultura e da educação – disse em
entrevista o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, pesquisador do
Museu Nacional.
Nessa
perspectiva se situa o Museu das Missões, em São Miguel (RS),
situado dentro de um sítio arqueológico, com a manutenção da
fachada da antiga igreja jesuíta, em ruínas, a qual se acrescentou
fachadas envidraçadas que impactaram cerca de 70 professores guarani
em visita que com eles fizemos em 2010. Da mesma forma a exposição
“Objets
blessés, la réparation en Afrique”
realizada em 2007 pelo Museu do Quai Branly, em Paris, questiona a
concepção de que a restauração deve restituir ao objeto seu
aspecto original e propõe outras técnicas capazes de visualizar as
feridas, cicatrizes e marcas sofridas pelo artefato ao longo do
tempo.
No
ano do golpe militar, em 1964, aos 17 anos, um amigo do bairro de
Aparecida, Newton Reis, me emprestou um livro de capa amarela “A
História da Filosofia”, do norte-americano Will Durant, que ele
retirou da biblioteca do seu pai, o velho Zany dos Reis. Lá está a
biografia do filósofo judeu Spinoza, excomungado pela Sinagoga no
séc. XVII, autor de uma frase que me marcou:
- Se
esquecemos o passado, ele volta.
Com
o apagamento das fontes históricas, aquele passado incômodo parece
estar voltando para nos assombrar, o que é confirmado pelos
comentários vergonhosos sobre o incêndio de Carlos Marun,
Marcelo Crivella e Jair Bolsonaro. Felizmente – como escreveu um
pesquisador do Museu - a ação solidária de estudantes,
professores e técnicos começa a juntar os cacos do que sobrou e a
plantar as sementes do que virá renovado e se traduzirá em novas
formas de colecionamento e exposição.
*
Jornalista e historiador.
Nenhum comentário:
Postar um comentário