quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Transgêneros - Mara Narciso


Transgêneros


* Por Mara Narciso
 
A curiosidade é atraída pelo título, que também afugenta os que têm horror aos temas difíceis. Falar dos transgêneros não os torna nem mais e nem menos frequentes. Não altera a incidência, mas melhora a existência deles, pois o que mata é a ignorância, a intolerância, o preconceito. Quem é transgênero não se envergonha de sê-lo, mas sofre com perseguições e ódios, que lhes fecham o mercado de trabalho, muitos deles sendo remunerados de maneira aviltante.

O sexo é determinado geneticamente pelos cromossomas XY e XX que definem as gônadas, sendo testículos para os homens e ovários para as mulheres. A presença dessas gônadas determina os anexos útero e trompas para mulheres e epidídimo e próstata para homens. Tais acontecimentos embrionários se acompanham de genitália externa feminina ou masculina. Ao nascer se tem o menino e a menina, que são registrados com nomes femininos ou masculinos, e, conforme a tradição social, são vestidos e criados conforme o gênero, fixando-se daí o sexo psicológico e o sexo social. Na puberdade surgem as características sexuais secundárias, que reafirmam o sexo social. Mas essa dualidade é apenas aparente, e o ser e o estar são múltiplos e variáveis.
 
A complexidade do comportamento sexual foge ao simplismo biológico e religioso, e mesmo que a sociedade queira amarrá-la a crenças e a preconceitos não consegue alterá-la. As lutas da comunidade LGBT têm por motivação o exercício da plena cidadania. Uma opinião é apenas uma opinião, não sendo fator definidor de comportamentos. A negação, o ódio, as suposições só atormentam essas pessoas, que, num certo momento das suas existências, chegaram à conclusão de estar no corpo errado.
 
O tema é da alçada da Endocrinologia, que trata dos hormônios e do intersexo, como genitália ambígua, hermafroditismo e transgêneros. A transexualidade se caracteriza pela profunda rejeição pelo sexo anatômico, pois se sente do sexo oposto. Essa identificação surge na primeira infância e aumenta de intensidade com o passar dos anos. Tal característica já foi considerada como um hermafroditismo psíquico. Nenhum tratamento psicológico é capaz de reverter este sentir. Não existe escolha, a pessoa apenas é, e daí se inicia uma batalha consigo mesma, até estar certa da sua definição. Então informa à família. A menina que se sente menino é homem trans, o menino que se sente menina é mulher trans. Quanto à transição legal e física para o gênero ao qual se sente pertencer é uma decisão.
 
Os médicos podem não se sentir à vontade para cuidar desses pacientes, mas nada ganham em abandoná-los, pois precisam de tratamentos seguros, sejam físicos, sejam psicológicos na busca da adequação. A família também precisa de suporte psicológico para se adaptar à nova realidade. Muitas delas não aceitam a transição, e expulsam o transgênero de casa. Isso não muda a decisão, apenas amplia a dor por não ser aceito.
 
A mudança de documentação é simples, basta uma declaração verbal e uma ficha limpa na justiça, ocorrendo a troca do nome, mantendo-se o sobrenome. Não é necessário relatório médico e nem cirurgia. Após consultas endocrinológicas e psiquiátricas (apenas para confirmação e questões legais), exames e avaliações gerais e específicas, tem início o uso de hormônios. Quanto às cirurgias genitais, nem sempre acontecem. Há perda da fertilidade, a menos que sejam estocados gametas para uma posterior fertilização. Após a transição, os transgêneros se sentem mais à vontade, sem o permanente constrangimento de antes.
 
O tema foi assunto do 33º Congresso Brasileiro de Endocrinologia, assim como de novela, mas não é coisa de moda. O pensar transgênero não cabe numa lauda, pois é múltiplo, é grande, é complexo. Sempre existiram pessoas que se sentiam inadequadas num corpo e num papel social que não eram os seus, com desconforto e busca infrutífera por uma identidade social. Queiram ou não, os transgêneros estão à nossa volta, à nossa frente. A melhora da lei lhes dá direitos, os desobriga à clandestinidade e evita a perda dos seus diplomas e currículos. Que cada um possa ser o que é, agindo com respeito, promovendo a tolerância. Ser civilizado é proteger a diversidade, é aceitar o diferente, é pacificar, é saber acolher, é conviver melhor.
 
 
* Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico e sócia efetiva de Academia Montes-Clarense de Letras, todos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”


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