sábado, 22 de setembro de 2018

Dia dos Namorados - Carmo Vasconcelos


Dia dos Namorados


* Por Carmo Vasconcelos


Estou só! Absolutamente só, gozando a inutilidade da minha independência recentemente adquirida. Essa independência que tanto desejamos e quando a alcançamos não sabemos o que fazer com ela.

À minha volta, vozes, muitas e diferentes; cavas, agudas, sussurrantes, estridentes, formando uma catadupa de sons – a música de fundo apropriada para abafar as risadas cínicas do meu Eu inferior que troça do meu passeio incerto, solitário e sem sentido.

Saí de casa com destino a um programa calendarizado: um encontro mensal de poetas que, habitualmente, é um deleite para os ouvidos e para a alma, além de afagar o meu Ego carente; poder declamar a minha poesia é para mim um ato de liberdade, e os aplausos gentis dos meus companheiros de letras são carinhos compensadores à atual ausência de um amor. E todo o poeta se alimenta de amor, esse néctar dos deuses que lhe aduba a alma e a inspiração.

Mas hoje, numa súbita atitude masoquista, renunciei aos aplausos. E já a meio caminho, mudei de rota. Talvez porque hoje é o “Dia dos Namorados” e não o “Dia dos Poetas”. Como se a data instituída comandasse os sentimentos… Tal como no “Dia da Criança” ela deseja mais mimos, ou como no “Dia da Mãe” todas as mães esperam o beijo de seus filhos, eu, neste “Dia dos Namorados”, como um robot programado, dou comigo a desejar receber uma flor, um beijo, ou, simplesmente, a terna palavra “Amo-te”.

Felizmente, no Shopping Center onde estou, cogitando debruçada sobre uma mesa de café, frente a uma folha de papel em branco (sempre as trago comigo) o eco das conversas anônimas prossegue sonante, e só eu posso ouvir essa vozinha interna, irritante e sarcástica que, trocista, continua rindo e sussurrando-me ao ouvido: “Não sejas ridícula, não tens mais vinte anos!”

Tinha pensado aquietar-me numa das salas de cinema adjacentes. Três horas de ilusão, tomando o lugar da heroína, far-me-iam esquecer as românticas divagações. Porém, vendo os cartazes, não achei guião nem protagonista capazes de calar a minha insatisfação. Nas 3 salas, corriam os filmes: "Titanic", "O Advogado do Diabo" e "007 (qualquer coisa)". Não. Não me apetecia nada desfrutar um romance de amor no meio de um naufrágio, ser a amante do advogado do diabo e, muito menos, ser interrompida na cama pela pistola de um espião. Nada disso!

Foi quando pensei: “Que tal ir comer um doce, dizem que é um eficaz substituto do amor; beber um bom café, far-me-á raciocinar com mais lucidez; fumar um cigarro long size, quilômetros de prazer?…"

Nada mais acertado! Depois de saborear os anestesiantes substitutos, deu para constatar que, afinal, não estou só! Tenho comigo a minha inseparável caneta, a fiel companheira de todas as horas, a minha confidente sempre disponível, que, imaginem… Ao pressentir-me triste, ganhou movimento próprio e interpondo-se a estes meus rabiscos solitários, pôs-se a escrever para mim: “Amo-te, amo-te, amo-te!”

O dia de todos os desejos amorosos, finalmente, chegou ao fim! Deixo a mesa de café, acompanhada desta preciosa folha de papel que guardou o meu desabafo, e respiro, aliviada. Amanhã será um vulgar dia sem rótulo, desses que nada lembram, nada prometem, mas… quem sabe? Tudo podem trazer!


* Poetisa portuguesa.

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