quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Com a cara e a coragem - Arita Damasceno Pettená


Com a cara e a coragem


* Por Arita Damasceno Pettená


Estávamos – e faz tempo – em uma tarde ensolarada, entre pais, educadores e educandos, diante de um auditório de aproximadamente duzentas pessoas. A temática, “A família na Escola”, deveria despertar momentos de reflexão no público ali reunido. E ali estavam também seres das mais diversas classes sociais. Dos mais variados credos. Das mais diferentes raças. Mas o objetivo era um só. Levar a nossa palavra, como poeta, como escritora, a cada criatura ali presente, através de exposição de ideias, de questionamentos, de respostas que, espontâneas, chegassem a um só consenso: como enfrentar, diante de um mundo minado por conflitos e confrontos, as convulsões geradas no dia a dia da falta de emprego, das flagrantes injustiças, da ausência de oportunidades para os que buscam brechas para uma existência mais digna. E falávamos do desperdício e das latas de lixo cheias de supérfluos enquanto milhares vivem nos dramáticos bolsões da miséria onde encontram de tudo, menos o caminho da esperança. De repente, atrás de nós, alguém nos cochicha: “Você está adentrando um terreno perigoso. A supervisora da merenda terceirizada está na cozinha”. Minutos antes recebíamos informações – e recusáramos a acreditar – que tudo o que sobra, assim que os alunos acabam de se abastecer, é jogado, sem dó, sem piedade, sem consciência, no latão para onde vão as coisas inaproveitáveis. E ai se o professor, perambulando por três, quatro escolas, recorre a uma simples bolacha, ou toma um líquido qualquer reservado à clientela escolar. É submetido sumariamente a um Conselho de Escola onde, de maneira humilhante, é tratado como se fosse ave de rapina só porque deixou de usar seu miserável tíquete, muitas vezes utilizado para complementar a cesta básica, que jamais será farta, com o aviltante salário que recebe.

E assim, pasmem os leitores, toneladas de alimentos que poderiam ser aproveitados com tranquilidade são jogados fora todos os dias, nos estabelecimentos de ensino do Estado, obedecendo a uma lei estapafúrdia – e que precisa ser derrubada – enquanto o Zezinho chega em casa e não tem o que comer . Enquanto o pai vai para o bar e bebe até cair porque meios não tem para sustentar a família. Enquanto os grandes se banqueteiam e esquecem os lázaros do lado de fora, brigando por um pedaço de pão, por um palmo de chão, por um pouquinho de paz.

A presença da responsável pelo setor foi para nós um presente. Chamamo-la diante dos que sentem na carne as constantes agressões contra um estômago sempre vazio. Diante dos que deixam seus pés marcados nas calçadas frias à procura de trabalho. Diante dos que tinham os olhos estatelados pela informação da encarregada de que obedecia ordens.

E nós, que nos dizemos humanos e somos de desumana raça, assistimos impávidos a esse festival de barbáries sob o aval do Estado, e não fazemos nada, absolutamente nada, para reverter esse ignominioso quadro de esbanjamento, implantado por nossos governantes e prefeitos. E isto porque nos falta cara e coragem para dar um basta a essa situação de calamidade pública, para derrubar de vez diretrizes que só prejudicam o povo. E este nosso silêncio, e esta nossa omissão nos tornam coniventes com posturas nada éticas, e até mesmo criminosas, e que deveriam ser rechaçadas, de pronto, pelos que têm ainda um pouco de sensibilidade, de espírito crítico, de amor ao próximo. E enquanto não lutarmos por uma terra mais justa, mais solidária, mais fraterna, continuaremos assistindo, de camarote, feiras esparramando nas ruas o que poderia ser aproveitado nos barracos, onde incontáveis crianças dormem sonhando com o pão-nosso de cada dia. Os restaurantes blefando a caridade ao impedir que de seus panelões possam sair o que de tanto precisam as creches, os orfanatos, os lares de velhinhos, que vivem sempre se debatendo com despensas vazias, com a clássica pergunta: – Como será o nosso amanhã? As escolas que têm, como meta, a educação ensinando o homem de amanhã a não repartir com o outro a sobra que lhe seria o maná do céu.

E tudo isso tem jeito? Tem sim. E é tão fácil. Depende apenas de cada um de nós. É hora de começar. É hora de somar forças na construção de um mundo melhor. À luta, pois!


* Arita Damasceno Pettená é professora, escritora e membro da Academia Campinense de Letras, além de membro honorária e fundadora do Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Campinas (IHGGC).


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