Nuvens
na escuridão
*
Por Juarez José Viaro
4:15.
Acorda e olha os números vermelhos do rádio-relógio, brilhando na
escuridão do quarto. “Cedo demais”, pensa. Vira-se para o outro
lado onde não veja aqueles números incandescentes de sua insônia.
O corpo parece pesar, preso a uma corrente no pé da cama. Lembra-se
da orientação de alguém de não se dormir sobre o lado esquerdo do
coração. Revira-se. Pensa em algo para voltar a dormir. Lembra-se
do mantra quando fazia meditação. Mas não podia dormir ao repetir
aquelas palavras desconhecidas, talvez em sânscrito. E sim atingir o
ponto alfa. Precisava pensar noutra estratégia. Talvez contar de
trás pra frente. 10, 9, 8... Melhor esquecer. Quem sabe contar
carneirinhos? Mas nunca havia contado carneiros quando criança, só
tinha visto isso em contos infantis traduzidos.
4:22.
Os números pareciam saltar aos olhos sonolentos. Quem teria
inventado esses traços como bisnagas de pão que formavam todos os
números? Lembrou-se do enorme relógio digital na Avenida Paulista.
O farol moderno dos transeuntes, as horas de trabalho contadas minuto
a minuto. Precisava relaxar. Repetir as três palavras mágicas:
relaxar, descansar, dormir. Relaxar, descansar, dormir. A cabeça,
porém, girava a mil, a hora em que todos os problemas do dia
seguinte pareciam insolúveis. Lembrou-se do conselho do analista:
“se não consegue dormir, aproveite o tempo para fazer algo útil”.
Levantava-se então, ia para o computador, entrava na Internet e
ficava até a hora de acordar. Talvez tenha sido essa a razão do fim
do casamento. Ou uma delas.
4.33. Se pelo menos tivesse alguém
ao lado para fazer sexo. Mas estava só. Só com sua insônia. Uma
palavra dentro da outra, espelho refletindo espelho. Como no slogan:
I like Ike. Uma coisa dentro da outra. Como na infância, ao lado da
mãe que fazia um bolo e vendo a latinha de fermento em pó. A
embalagem com o desenho de outra lata de fermento, com a embalagem de
outra latinha, até o infinito. Uma lata dentro de outra. Como as
latas de mantimento guardadas no armário, uma menor que a outra, uma
dentro da outra. Precisava dormir. Girou para o outro lado de novo, o
corpo pesava, com os grilhões nos pés, os rangidos da cama. O
vizinho do apartamento de cima, que escutava ranger a cama e gemer,
talvez fazendo sexo com a esposa. O abrir e fechar de janela do
quarto de outro vizinho, talvez solidário na insônia.
Levantou-se
e foi ao banheiro. Lembrou-se de Duchamp e seu urinol. A arte
ironizando a vida. Ouvia também o ruído do vizinho de cima ao
mijar, ao apertar a descarga, ao ligar o chuveiro, a vida em
apartamentos, sem intimidade. Aproveitou para fechar a porta, para
não ver o dia nascer, refletido na parede do corredor. Voltou a
deitar-se, girou o rádio-relógio para não ver aqueles números
angustiantes e vermelhos. Todos os problemas a resolver no dia que já
teimava em começar cedo. Tomar o banho, vestir-se, tomar o café,
pegar o carro e enfrentar aqueles cúmplices sonolentos no trânsito.
Chegar ao trabalho, deparar-se com os mesmos rostos conhecidos, mas
nada familiares. Bom-dia com cheiro de café tomado às pressas.
Cheiro de produtos de limpeza no escritório. As mesmas coisas nos
mesmos lugares.
As horas, as horas. Que fazer com as horas que
passam e não deixam dormir. Com os números vermelhos que alertam
que o dia está chegando e é preciso levantar-se da cama. A cama e o
banheiro, o trajeto de sua insônia. Tentou não pensar em nada,
apenas fechar os olhos e “ver” aqueles fios luminosos da retina
boiando no escuro. Tentar não pensar, suprema conquista dos iogues.
Não pensar, deixar as imagens fluírem, sem pensar. Em vão. O dia
já teimava em nascer, via a luz penetrando já pelas frestas da
esquadria de alumínio da janela. Ouvia pássaros, quais seriam?
Talvez o mesmo bando de maritacas que passavam com seu ruído
estridente, vindos do Parque do Ibirapuera, ou fugindo de algum ruído
de trânsito
.5:11. Aos poucos já podia ouvir barulhos de
carros. O vizinho que madrugava, retirando o carro da vaga da
garagem. Sempre no mesmo horário. Algumas derrapagens de carros
apressados, talvez voltando de noitadas. Ainda podia dormir mais,
teria que repor as energias gastas no dia anterior. Calculava as
horas que ainda restavam para adormecer. Lembrou-se da terapia. O
analista associando a hora de chegada do pai de madrugada, quando era
criança, com o horário que batia a insônia, de adulto. O pai
chegando de madrugada, com seu cheiro de cigarro infestando o quarto
comum. A psicanálise como um tipo de literatura.
Virou-se pela
enésima vez. O corpo cansado, o lençol amarrotado, o travesseiro
virado mais uma vez. O som dos pardais, talvez milhares deles.
Lembrou-se da definição ouvida ou lida. Os pardais, trazidos pelos
portugueses, pássaros inúteis, sem plumagem bela, sem canto
harmonioso, apenas cagando e matando outros pássaros que invadiam
seu território.
Quem teria dito isso? Precisava ser mais
esquemático, anotar coisas importantes, citações, para ocasiões
sociais, sempre havia utilidade quando faltava assunto. Dizer uma
máxima, um pensamento de alguém famoso era útil para começar
assunto, mostrar conhecimento, superioridades. Balela, precisava
aprender a dormir. Resolveu tentar mais uma vez, os números
vermelhos se aproximando do limite de tempo permitido. Concentrou-se,
deixou fluir os pensamentos, relaxou. Uma nuvem de sonolência
parecia passar por aquela noite escura. Nuvens na escuridão.
Adormeceu.
6:00. O despertador despertou, determinando o fim da
noite.
(*) Juarez José Viaro é formado em Letras e Jornalismo. Publicou o livro de poemas “Aroma de Amora” e participou de movimentos literários em Osasco e São Paulo. Tem um romance inédito, “Viagem ao Interior”.
(*) Juarez José Viaro é formado em Letras e Jornalismo. Publicou o livro de poemas “Aroma de Amora” e participou de movimentos literários em Osasco e São Paulo. Tem um romance inédito, “Viagem ao Interior”.
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