Vida real
*
Por Amanda Lourenço
Ele
sentia que alguma coisa estava faltando. Até que gostava de ver
novela, mas quando acabava era um vazio só. E ele logo esquecia do
amor entre César Fernando e Camila Augusta. O que fazer agora?
Resolveu pegar o jornal pra dar uma olhadinha. Não é que se
interessou?
E
foi assim que pegou gosto pela coisa. Passou a saber de tudo que
acontecia na cidade e no mundo inteiro, de fofoqueiro que era. Mas
dali em diante era só alguém se meter a besta com ele que ele ia
dizendo em tom de ameaça: "É melhor tomar cuidado porque eu tô
bem informado". E os outros riam, coitados, achando que o cara
que já era estranho tinha endoidado de vez. Onde já se viu, como se
aquilo fosse arma por acaso...
Eles
não entendiam muito bem esse negócio de estar bem informado, que o
cara enchia a boca pra dizer. Ué, todo mundo sabia muito bem que a
Camila Augusta ia terminar tudo com o César Fernando porque a Débora
Angélica fez um plano diabólico pra separar os dois. Não era isso
que era estar bem informado?
Mas
ele não ligava para o que os outros diziam e não quis parar por
ali. Ele achava que saber tudo o que ele sabia e não fazer nada era
o mesmo que não saber. Precisava fazer alguma coisa. Mas o quê?
Então
ele decidiu que devia alertar a todos sobre o que estava acontecendo
no mundo. Começou com os colegas. Falou, falou, mas quase ninguém
ouviu, queriam mesmo era falar, afinal, agora que César Fernando e
Camila Augusta estavam se acertando, o que poderia ser mais
interessante que isso? Todos estavam ansiosos para darem suas
opiniões sobre o caso. Mas apesar disso, uns poucos prestaram
atenção no que ele falava.
E
a partir dali aquele cara estranho passou a ser um problema. Já não
era a primeira vez que reclamavam dele. Ele queria umas coisas que
ninguém tinha querido antes. Primeiro foi na faculdade, onde queria
porque queria mostrar que o professor estava errado. Depois teimou em
organizar uma passeata a favor de uma causa complicada. E logo no dia
seguinte, assim de repente mesmo, mudou de ideia sobre as passeatas,
pois achou o povo acomodado demais, crentes que estavam fazendo sua
parte em andar um pouquinho e ir embora pra casa.
Foi
aí que bolou um plano mais diabólico do que o da Débora Angélica.
Numa terça-feira, nos principais jornais do país, saiu uma
propaganda esquisita, sem bonequinhos, sem cor ou sem noventa e nove
no final, que de tão simples destoava das outras e por ironia era
sempre a primeira a ser lida. Era assim: "Pessoas que têm mais
dinheiro do que precisam acabam fazendo coisas estúpidas com ele. Dê
o excesso para alguém que precise mais que você". Ficou na
dúvida se escrevia excesso, porque achou a palavra muito séria, mas
decidiu que já não era mais hora para brincadeiras e fez questão
dela lá.
Foi
um alvoroço só, aquela terça-feira. Não porque as pessoas
estivessem se comprando presentes ou pagando almoços para os
necessitados, mas porque todos queriam saber qual era a nova jogada
de marketing. Os publicitários, coitados, passaram o dia atendendo
ligações de empresas que perguntavam porque diabos aquela campanha
magnífica não tinha sido feita para eles. Que grande sacada!
As
pessoas, então, depois de todo aquele rebuliço inicial, passaram a
pensar menos na estratégia misteriosa e mais na mensagem em si. E de
pouco em pouco, cada um foi se dando conta da veracidade daquela
frase, até que todos concordaram enfaticamente com ela. O autor da
mensagem, escondido em seu anonimato, ficou orgulhoso de sua ideia e
teve certeza de que em breve a pobreza estaria extinta no país. Era
unanimidade: todos se convenceram e tomaram como discurso próprio o
fato de que quem tem dinheiro demais, tem que dividir. Até
esqueceram um pouco da novela, e olha que ela estava no fim, na
melhor parte, com a chegada dos gêmeos.
O estranho
foi que todos falavam, falavam, mas não se via movimento algum. E
então o cara percebeu que o país todo parecia esperar
pacientemente. Esperar o que, ora bolas? A hora é essa! Pois a hora
passou e a impaciência tomou conta de todos. E então ele logo
percebeu que todo mundo achava que alguém mais rico tinha que
dividir o dinheiro com ele. Cada um com a sua prioridade. Um queria
comprar comida, o outro um tênis, aquele lá um carro, que ficaria
tão mais fácil de ir trabalhar. Já aquele outro queria uma casa de
5 quartos: um pra ele, um pro Juninho, um pra Carol, um pra TV e um
pra visitas. O vizinho dele tinha, ué!
O
cara ficou irritadíssimo com a situação. Que ideia, a dessa gente,
não querer abrir mão de nada. É puro egoísmo deles. Ah se eles
entendessem como as coisas funcionam, com certeza trocariam seu
computador de última geração por um mais velhinho para dar a
diferença em comida para alguém que precisa. Ora bolas! Pena que
ele próprio não podia fazer isso, pois é lógico que precisava do
melhor computador do mercado para continuar com seu plano e salvar o
mundo. Uma pena mesmo, senão ele ia mostrar como é que tinha que
fazer. Até tentou convencer seus seguidores a darem o exemplo e
venderem o carro, mas eles precisavam de um transporte para poupar
tempo e assim dedicarem-se mais à tarefa de se informar.
Completamente compreensível. Mas eles eram exceções. Os outros
podiam e não faziam por puro egoísmo.
A
essa altura do campeonato, percebeu que seu plano tinha falhado,
exatamente como o da Débora Angélica. Mas definitivamente, ele não
parava por ali. Foi falta de experiência, pensou. Ficou em dúvida
sobre o que fazer. Nessa distração, escolheu se distrair passando
os canais da TV e, de repente, viu a novela nova. Tinha uma história
tão interessante... Uma garota descobriu que o amor de sua vida era,
na verdade, seu irmão! Decidiu esquecer um pouquinho aquela história
de informação só até que a novela acabasse.
*Amanda
Lourenço é jornalista.
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