Mito: a criatura recriando o Criador
O mito e a
realidade constituem-se em tendências antagônicas (embora não
necessariamente), que sempre se chocaram, através dos tempos e das
gerações (e ainda se chocam, como veremos) na alma do homem e
determinaram sua forma de entender e de descrever o mundo. Mesmo nos
tempos atuais, tidos e havidos como fundados numa suposta
racionalidade, o conflito persiste. Determina linhas de raciocínio
conflitantes (se levadas a extremos) e divide os filósofos em duas
correntes opostas de pensamento: a materialista e a idealista. Ambas
balizam, inclusive, o fundamento político contemporâneo, mediante
duas ideologias opostas (capitalismo e comunismo), que dividem as
sociedades nacionais em blocos e que, quer na sua concepção de
organização social quer nos objetivos a serem alcançados, se
confrontam.
A palavra
“mito”, proveniente do grego “mythos”, cujo significado é
fábula, recebeu, dos dicionaristas, pelo menos dez definições.
Filosoficamente, o termo se refere à exposição de uma doutrina, ou
de um pensamento, ou de um acontecimento de maneira figurada,
imaginativa, “fabulosa”. Sua matéria-prima é a fantasia. É o
fruto exclusivo da criação da mente humana. É essa capacidade,
aliás, de “imaginar” que distingue esse animal complexo e
contraditório dos demais, que se valem, exclusivamente, do instinto
para sobreviver e não conseguem apreender, compreender e transmitir
a realidade que os circunda.
O filósofo
chinês, Lao-Tsé, observou que “existe o animal ainda no homem;
mas não é certo que todo o homem exista no animal”. Embora ambos
tenham funções biológicas às vezes assemelhadas, quando não
iguais, o ser humano tem essa característica especial, privilegiada,
única que o distingue das demais criaturas: a capacidade de pensar
e, sobretudo, de elaborar ideias. E, através da imaginação, de
“criar”.
Mediante a
utilização do mito, temos a possibilidade de tornar compreensíveis
conceitos bastante complexos, às pessoas de menos preparo
intelectual que, de outra forma, não seriam compreendidos por elas.
Jesus Cristo, por exemplo, utilizou esse tipo de símbolo, ou seja,
as parábolas, para transmitir mensagens de compreensão,
solidariedade, fraternidade e amor. Platão, igualmente, se valeu do
mito para expressar o que intuía ser o que de mais transcendental o
homem possuía: a ideia. Outros tantos sábios recorreram a esse
recurso para ilustrar multidões.
O mito, em
linhas gerais, é entendido, em seu sentido mais comum, como uma
narrativa de acontecimentos “fabulosos” (ou heroicos), perdidos
no tempo. Quando foi que, pela primeira vez, o homem tomou
consciência de que existia, de que estava em um lugar que para ele
era totalmente desconhecido (e provavelmente hostil), e passou a
analisar o que via, ouvia, sentia e pensava? Provavelmente, jamais
saberemos. Mas não é difícil de se intuir “como” isso se deu.
Um dos seus
questionamentos, certamente, foi: quem criou este mundo imenso e tão
cheio de mistérios? Outro: o por quê da alternância da luz e das
trevas, do frio e do calor? E dessas perguntas, outras tantas foram
surgindo, aos borbotões. Como: “o que eram aqueles pontinhos
luminosos que ele via à noite no espaço?” “Por que, em
determinadas ocasiões, caía água do alto e em outras não?”
“Qual o processo que ocasionava um frio intenso em certo período e
o renascer das plantas e das flores, com o calor, em outro, em ciclos
sucessivos que se repetiam?” E, a rigor, até hoje surgem milhões
e milhões, bilhões e bilhões, infinitas perguntas que carecem de
resposta.
Foi para
tentar responder a estas e a tantas outras questões que o homem
criou o que os gregos denominaram de “filosofia” (cujo
significado é “amor à sabedoria”). Trata-se de um exercício
mental que se caracteriza, sobretudo, pela persistente e incessante
procura de compreensão da realidade. De incansável tentativa de
apreensão do significado de cada coisa, individualmente, e da sua
inserção num todo. De necessidade psicológica de responder àquelas
questões básicas, primitivas, fundamentais (onde estou? o que sou?
de onde venho? para onde vou?) que o primeiro homem formulou (não se
sabe quem, como, quando e onde, mas que se tem a certeza que alguém
fez um dia), produzindo a primeira e, certamente, a mais importante
revolução já feita no Planeta: a da inteligência.
Mas a
propensão do homem pelo fantástico é irresistível. Por isso, para
explicar o sol, a lua, as estrelas, o dia, a noite, as estações do
ano, os ciclos da natureza, etc., criou, em sua mente, seres
poderosos e imortais, nos quais passou a acreditar piamente, sem se
dar conta que eram frutos da sua imaginação. Tão logo intuiu o
sentido de divindade, de um criador de tudo o que o cercava e dele
próprio, esse animal fantástico e exótico “criou” o primeiro
mito.
Todavia,
sua tendência à racionalização foi além, muito além dessa
criação. Precisava “explicar”, com lógica, “racionalmente”,
como essas supostas entidades poderosas, sobre-humanas, criaram o
mundo. Dessa forma, inventou a cosmogonia, com deuses que encarnavam
a natureza, mesclados com aspectos da condição humana. Estavam
lançados os fundamentos da religião (uma das primeiras grandes
criações humanas), inicialmente como manifestação de
inteligência. Ou seja, de uma tentativa de “explicar” a
realidade através do mito. Mais tarde, como instituição, que se
diversificou, até que chegasse à infinidade de crenças que existe
hoje.
Naqueles
tempos remotos, e heroicos, a comunicação de ideias era autêntica
façanha, mesmo dentro dos primitivos clãs. A primeira linguagem,
certamente, era uma algaravia de grunhidos, chiados, rosnados e
outros tantos sons, acompanhados de gestos. Mas possibilitava
comunicar as necessidades básicas do cotidiano. Com o tempo,
contudo, teve um desenvolvimento notável, de geração para geração.
Aquela
forma rudimentar e selvagem de comunicação foi, aos poucos, se
racionalizando. À medida que o tempo passava, foram sendo criados
novos símbolos, mais simples, mais enfáticos, que aos poucos se
popularizaram. Todavia, quer a transmissão de ideias, quer a
preservação das crônicas do cotidiano, como caçadas, guerras,
catástrofes e experiências, dependiam, exclusivamente, da memória.
Passavam, pois, de uma geração a outra, bastante deturpadas em
relação à comunicação original. Ainda assim, mesmo que
parcialmente, foram preservadas.
Formou-se
uma corrente comunicativa no tempo. Técnicas de memorização foram
desenvolvidas e difundidas. Os mais velhos transmitiam todo o
conhecimento que adquiriam aos mais jovens, que, por seu turno, o
repassavam aos descendentes (não sem antes, claro, alterar alguma
coisa), que faziam a mesma coisa com filhos e netos, e assim
sucessivamente. Não havia registros escritos, pois não havia,
ainda, o alfabeto.
Foi dessa
forma, pois, que nasceram as narrativas de tempos fabulosos, em que
deuses e homens conviviam, lado a lado e, não raro, se confrontavam.
Feitos corriqueiros, mas que eram de grande importância para o clã,
eram transformados em “heroicos”, passado muito tempo após
ocorridos. E cada geração acrescentava um detalhe a mais, alguma
coisa da própria invenção – quanto mais inverossímil, melhor –
sobre o relato que havia ouvido, pois, como está mais do que
provado, a imaginação popular tem uma irresistível tendência ao
exagero. Esta é, grosso modo, a origem dos grandes mitos.
Boa leitura!
O
Editor.
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