Sujeito Zero (22)
*
Por Sergio Vilas Boas
ele
esteve inconsciente
desde a primeira vez que o anestesiaram para tentar drenar os
derrames nos dois pulmões metastáticos. Agora,
de uma posição
privilegiada, ele está tendo a responsabilidade de dirigir a
aeronave da morte mesmo com as mãos crispadas, cólicas, esôfago
dilacerado, veias perfuradas e suores; ficou objetivamente entregue a
atmosferas diversas.
Em
seu último dia de UTI, Seu Edmundo já não precisava de informações
e carinhos; já não sobrevivia em termos de dias e noites. As
enfermeiras seguravam e acariciavam mãos murchas. (Uma
devia se sentir capaz de estabelecer contatos mediúnicos e
despedidas diferentes das que a maioria dos mortais conhece).
Enquanto
isso, burburinhos alucinantes, lembranças embriagadas e fronteiras
nevoentas estimulavam-no a transitar de mansinho por dois universos.
O que o silêncio não escondia do espectador Edmundo eram os cheiros
fortes, a pedregosa respiração de alguns companheiros, médicos
pensando alto suas equações imprecisas, enfermeiras sonhando
acordadas com possíveis pretendentes.
Jamais
ele se expôs como agora. Seu secreto par de dentaduras virou objeto
de domínio público; o pênis flácido, apequenado, está conectado
a uma mangueira de borracha sanfonada; puseram-lhe um fraldão e uma
veste de duas bandas, amarrada lateralmente com laços frouxos. As
solas dos cascudos pés com joanetes estão descobertas para quem
quiser debochar.
O
fato mais espetacular é que Seu Edmundo sequer soube que seu
organismo foi capaz de desenvolver um câncer. Interpretou tão bem o
papel de figurante que não deu a menor pelota para o destino.
*
Jornalista, escritor e professor. Editor do portal TextoVivo
Narrativas da Vida Real (www.textovivo.com.br);
vice-presidente da Academia Brasileira de Jornalismo Literário
(ABJL). Autor de “Os
Estrangeiros do Trem N”
(1997), “Biografias
& Biógrafos”
(2002) e “Perfis”
(2003), entre outros. E-mail: svilasboas@textovivo.com.br.
Nenhum comentário:
Postar um comentário