sábado, 15 de setembro de 2018

Sujeiro Zero (22) - Sergio Vilas Boas


Sujeito Zero (22)


* Por Sergio Vilas Boas


ele esteve inconsciente desde a primeira vez que o anestesiaram para tentar drenar os derrames nos dois pulmões metastáticos. Agora, de uma posição privilegiada, ele está tendo a responsabilidade de dirigir a aeronave da morte mesmo com as mãos crispadas, cólicas, esôfago dilacerado, veias perfuradas e suores; ficou objetivamente entregue a atmosferas diversas.

Em seu último dia de UTI, Seu Edmundo já não precisava de informações e carinhos; já não sobrevivia em termos de dias e noites. As enfermeiras seguravam e acariciavam mãos murchas. (Uma devia se sentir capaz de estabelecer contatos mediúnicos e despedidas diferentes das que a maioria dos mortais conhece).

Enquanto isso, burburinhos alucinantes, lembranças embriagadas e fronteiras nevoentas estimulavam-no a transitar de mansinho por dois universos. O que o silêncio não escondia do espectador Edmundo eram os cheiros fortes, a pedregosa respiração de alguns companheiros, médicos pensando alto suas equações imprecisas, enfermeiras sonhando acordadas com possíveis pretendentes.

Jamais ele se expôs como agora. Seu secreto par de dentaduras virou objeto de domínio público; o pênis flácido, apequenado, está conectado a uma mangueira de borracha sanfonada; puseram-lhe um fraldão e uma veste de duas bandas, amarrada lateralmente com laços frouxos. As solas dos cascudos pés com joanetes estão descobertas para quem quiser debochar.

O fato mais espetacular é que Seu Edmundo sequer soube que seu organismo foi capaz de desenvolver um câncer. Interpretou tão bem o papel de figurante que não deu a menor pelota para o destino.

* Jornalista, escritor e professor. Editor do portal TextoVivo Narrativas da Vida Real (www.textovivo.com.br); vice-presidente da Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL). Autor de Os Estrangeiros do Trem N (1997), Biografias & Biógrafos (2002) e Perfis (2003), entre outros. E-mail: svilasboas@textovivo.com.br.





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