No
bar, um amigo divagando
*
Por Sérgio Geia
Ele
descobriu que a vida é uma enorme roda gigante girando ao contrário.
Mas antes de divagações de chuveiro, diz, entre um chope e outro,
ele quer esclarecer uma coisa. Sua vida não está girando ao
contrário, frisa bem, por problemas insolúveis, vícios, decisões
maltomadas. Se foi isso o que pensei, e ele fala também com a mão,
bem jeitão Temer de falar, esqueça.
Desde os primórdios, desde quando viu a luz e se sentiu uma caricatura de joelho, um ser consciente, mais ou menos uno, despreparado, insosso e bobinho, desde o início de sua precária existência, ele flerta com a contramão, como se estivesse — nada mais clichê — a nadar contra a maré, buscando o que não tem em detrimento do que tem. Na verdade, uma questão de tempo. Ou destempo, ele corrige; acha que se encaixa melhor, destempo, repete, pensando. Descobriu que vive em tempo errado, vida ao contrário, de cabeça pra baixo.
Se
você não está entendendo nada, sorry, meu amigo, ele diz, juntando
as duas mãos perto da boca como se fosse rezar, pedindo, na verdade,
desculpa com a mão, bem jeitão… bem, você sabe. Talvez eu
consiga achar uma faixa mais objetiva pra lhe contar essas divagações
com brejas, e levanta a taça com suave alegria.
A
coisa fez sentido outro dia, num fato corriqueiro ocorrido havia
tempo no campo dos amores. Quando sua primeira namorada o chamou de
infantil ele ficou confuso. E a coisa piorou quando, numa balada,
reparou o modo como os caras mais velhos olhavam as mulheres.
Descobriu, ele diz, que não tinha aquele olhar; você sabe o que é
isso?, me pergunta, com os olhos arregalados.
Fisicamente
verdolengo, magricela como uma vareta de bambu, com uma jabuticaba no
pescoço, tênis da moda e camisetas infantis, intuiu que a mudança
tinha que começar pelo vestuário. Lembro, eu digo, quando você
adotou sapatos, calças bag, camisas sociais, um jeitão mais sério
de ser. Tudo para parecer mais velho e mais gordo.
A
necessidade de parecer mais velho e mais gordo era premente em mim,
ele concorda. Logo, suas referências passaram a ser os professores
da faculdade, quanto mais admirava mais igual queria ser, fosse no
modo de se vestir, no modo de se portar. Lembro de você lá naquele
seu quarto roxo, estudando horas a fio cada um de seus ídolos, bem
jeitão Lair Ribeiro de ser, eu digo. Eu era um jovem com 18, 19 anos
querendo ser igual aos meus professores de 40, 50 anos, ele concorda.
Na verdade, ele não se ligava nessa questão de tempo, nessas
referências inadequadas, nunca caiu a ficha.
Ontem
(isso quer dizer, uns anos atrás), ele se olhou no espelho, e
percebeu o que havia criado, ou, no que havia se transformado: o
homem dos seus sonhos. Tinha sapatos (o tênis evaporou de sua vida),
calça bag, camisa de manga comprida dobrada nos braços. Tinha o
mesmo andar cadenciado dos seus professores, a mesma expressão, o
mesmo olhar dos caras mais velhos em dia de caça, verdadeira cópia
de suas referências, xerox meia-boca.
O
que provocou nova mudança, ele vai avançando na história, entre
chopes e batatas fritas. Logo se viu brigando contra o tempo outra
vez, diz, numa relação que parecia circular. Agora, queria ser o
jovem de 18, 19 que não foi, tentando fazer o que não fez, buscando
referências jovens, ignorando a idade, impelindo-se a usar
camisetas, calças skinny, tênis, a viver a vida que já não era
mais sua.
Mas
hoje, ele dá um baita sorriso, hoje, fião, ele diz com euforia,
hoje, enfim, debaixo do chuveiro, alguma coisa estalou em mim, e eu
descobri que não quero nada disso, tá me entendendo?, e me olha
fundo, nada disso. Quero talvez a coisa mais simples e ao mesmo tempo
mais complexa que um homem pode querer na sua vida: ser o que sou.
Espero,
diz agora baixinho, a fim de que as pessoas estranhas que lotam o
acanhado bar na Augusta não ouçam, espero, cada vez mais baixinho,
mesmo tendo contado sua história a plenos pulmões, espero, diz num
quase inaudível sussurro, espero que não seja tarde.
*
Cronista.
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