Erudito
e eclético
Os
escritores muito eruditos, com conhecimento a fundo de determinadas
disciplinas, tendem, via de regra, a pecar pela rigidez. Apegam-se a
estilos e temas de sua especialidade e se mostram imperitos, quando
não incapazes, de flanar por outras áreas do conhecimento, que não
as suas. Pecam, portanto, por falta de ecletismo. Esse não é o
caso, todavia, do sul-africano J. M. Coetzee, residente, atualmente,
na cidade australiana de Adelaide, onde leciona na universidade
local.
Trata-se
de um homem de letras que chegou ao topo da atividade que escolheu: a
literatura. Consagrou-se, notadamente, como romancista. Seu mais
recente best-seller foi “Verão”, que conquistou crítica e
público nos principais centros culturais do mundo. Ademais, não
precisa provar mais nada para ninguém. Afinal, foi reconhecido,
mundialmente, ao obter a mais reputada e cobiçada premiação
literária, o Nobel de Literatura de 2003. Foi o quarto escritor
nascido na África (e o segundo da África do Sul, a que o precedeu
foi Nadine Gordimer, em 1991) a lograr essa façanha.
Antes,
já havia protagonizado outro feito quase que do mesmo porte. Havia
ganho o disputadíssimo “Booker Prize”, dos Estados Unidos, e em
duas oportunidades. O primeiro prêmio foi pelo livro “Life &
times of Michael K”, em 1983. E o segundo, 16 anos depois, em 1999,
por “Disgrace”. Foi o primeiro escritor a conquistar esse prêmio
por duas vezes. Como se vê, não precisa provar mais nada para
ninguém.
Interessante
é a formação acadêmica de Coetzee. Algumas de suas qualificações
não têm nada, absolutamente nada a ver com literatura.
Bacharelou-se, por exemplo, em matemática. Entre 1962 e 1965, viveu
uma temporada na Inglaterra, quando trabalhou como programador de
computadores. Porém, paralelo a essa formação técnica, fez,
também, estudos específicos, que o capacitaram a caminhar com
segurança e desenvoltura pelo mundo das letras. Para tanto, além de
um bacharelato em língua inglesa, doutorou-se, na Universidade do
Texas, em Austin, em linguística
dos complexos idiomas de raízes germânicas. Como acadêmico,
portanto, o cara é uma fera!
Sua
brilhante carreira literária, que desembocou no Nobel de Literatura
de 2003, começou em 1974, com o livro “Dusklands”. A ele,
seguiram-se outros 20, entre os quais o recentemente lançado no
Brasil pela Companhia das Letras, intitulado “Mecanismos internos”.
Muitos dos livros de Coetzee já chegaram ao Brasil e podem ser
encontrados nas melhores livrarias. São os casos, por exemplo, de “À
espera dos bárbaros”, “O cio da terra. Vida e tempo de Michael
K”, “A idade do ferro”, “O mestre de Petersburgo”, “Cenas
de uma vida”, “Desonra”, “Homem lento” e “Diário de um
ano ruim”, entre outros.
“Mecanismos
internos” não foi um livro planejado para sê-lo. Coetzee fez, em
relação a ele, o que muitos escritores, que são colunistas de
jornais e revistas (literários ou não) fazem. Ou seja, reúnem as
melhores colunas, que tenham alguma relação umas com as outras,
para conferir uma certa unidade temática ao conjunto, e publicam-nas
em um e, às vezes, em vários volumes.
Os
21 textos que compõem esse livro foram publicados na prestigiosa
“New York Review of Books”, o suplemento literário do jornal
“The New York Times”. Quem se baseia, apenas, no currículo de
Coetzee, sem se dar o trabalho de ler essa obra, pode ter a impressão
(falsa) de se tratar de textos complicados, carregados de erudição,
de leitura monótona, para não dizer, chata. Não ocorre nada disso.
Aliás, pelo contrário.
O
autor, valendo-se de sua longa experiência de professor – função
que ainda exerce, agora na Universidade de Adelaide – esbanja
didatismo e clareza, sem perder sua melhor característica: a
capacidade crítica e o talento de arguto observador, que enxerga
determinadas nuances (positivas e/ou negativas) nos textos dos
escritores cujas obras passam pelo seu crivo. É, portanto, não
somente o romancista consagrado, o ganhador de um Nobel de
Literatura, mas também um ensaísta de mão cheia.
Nos
21 ensaios que compõem “Mecanismos internos”, Coetzee avalia a
obra principalmente de seus precursores e, em especial, dos
contemporâneos, o que lhe dá foros de atualidade. Entre estes,
destaco suas análises sobre Walter Benjamim, Nadine Gordimer e
Robert Musil. O livro conta com a tradução de Sérgio Flaksman.
Recomendo-o aos que amam literatura e que se esmeram em conhecer sua
importância e alguns dos seus “segredinhos”.
Um
dos aspectos a serem destacados, em “Mecanismos internos”, é a
análise que Coetzee faz das traduções. Dá tanta importância a
essa questão, que lhe dedica um terço dos textos do livro. E ela é
importante mesmo. Ademais, o autor tem capacitação plena para
opinar, com propriedade, a respeito. Afinal, entre suas tantas
habilidades, está a de tradutor, função que exerce com
naturalidade por dominar, com absoluta fluência, três idiomas:
inglês, alemão e holandês.
A
vantagem da sua erudição mostra-se por inteiro na minúcia de suas
pesquisas e na coerência de suas análises. Concordo com Gabriel
Innocentini que, em sua análise de “Mecanismos internos”, no
site da Revista Bula (WWW.revistabula.com),
destaca: “Coetzee lê atentamente com o leitor, levantando
hipóteses, investigando por que o escritor em questão fez
determinadas escolhas. Primeiro, compreender; depois, julgar. Somente
depois de entender de que forma tal efeito foi obtido. Coetzee avalia
se uma opção diferente não traria melhores resultados”. Esse é
um erudito que não se deixa “fossilizar”. E que, sobretudo,
esbanja ecletismo.
Boa
leitura!
O
Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Chique demais esse Coetzee.
ResponderExcluir