domingo, 23 de setembro de 2018

Sucessão de descobertas - Pedro J. Bondaczuk


Sucessão de descobertas



* Por Pedro J. Bondaczuk


A vida consiste em uma contínua descoberta, desde o nascimento até a morte. A partir do útero materno, quando nosso sistema nervoso e, por consequência, o cérebro estão formados, já temos consciência, embora sem possibilidades de externar esse conhecimento, de que existimos e nos encontramos em um ambiente muito bem protegido e acolhedor. Pelo menos é o que dizem os especialistas. Aliás, isto é comprovável, mediante o processo da regressão. Trata-se da primeira descoberta de uma sucessão que cada indivíduo terá no correr de sua existência, de acordo com a sua realidade e sua personalidade. Ao morrer, descobriremos o quanto foram tolos os dogmas e valores aos quais nos aferramos. Mas então já será tarde...

Criar, seja o que for, também é descobrir. É, sobretudo, ousar. É ter coragem para aceitar o risco do ridículo. É desafiar o sistema vigente com alguma novidade. É enriquecer o patrimônio da própria humanidade. É colher os frutos desse supremo ato com humildade. O norte-americano Michael Drury diz o seguinte a respeito: "A grande verdade, a verdade transformadora, é que ser criativo constitui uma descoberta --- a descoberta de nós mesmos, de nossa maneira própria de reagir diante da vida. E descoberta é aquilo que ninguém sabia antes. É algo que se faz só, como nascer ou morrer".

Algumas verdades, preexistentes, mas que por alguma razão, não conseguimos alcançar em determinado período da nossa trajetória vital, de repente emergem diante de nós, se desnudam aos nossos olhos, se revelam à nossa consciência. Muitas são óbvias, mas encaramo-las dessa maneira apenas depois da revelação. Esta, em geral, ocorre com a aquisição da experiência, resultado de muitos anos de empirismo, de sucessivas tentativas e erros. Torna-se, para nós, também uma descoberta. Uma delas é a forma como devemos nos comportar no dia a dia para que a nossa vida se torne um prazer e não o "vale de lágrimas" em que muitos a transformam.

Robert Louis Stevenson faz interessante observação a esse propósito: "Todos podem executar seu trabalho, por difícil que seja, por um dia. Todos podem viver com doçura, paciência, ternura e pureza até que o Sol se ponha. E isso é tudo o que a vida realmente significa". Nós é que a complicamos com nossos temores, iras, ambições e egoísmo. Para muitos, essa constatação pode ser uma descoberta. Outros, do alto da sua arrogância, podem ironizá-la e jamais assimilá-la. Para os conscientes, é um roteiro de conduta, que os torna agradáveis aos olhos dos que convivem com eles.

Outra descoberta, que é complicada, por ferir nosso amor próprio, é a das nossas limitações. Mas ela é importante. Se quisermos empreender conquistas, é indispensável sabermos onde estamos, o que somos e o que queremos, para que possamos escolher a estratégia e os meios para a nossa evolução. Não é necessário alardear nossas deficiências. Mas é indispensável que as identifiquemos e nos disponhamos a corrigir o que estiver incorreto. O dramaturgo Auguste Strindberg sintetiza essa postura: "Para mim, a alegria de viver está na dura e cruel luta pela vida. O aprender algo é para mim uma alegria".

Mas é possível sermos criativos com a admissão pública das nossas vulnerabilidades. Há formas de fazer essa revelação sem que precisemos nos humilhar. A literatura presta-se bem a isso. Podemos projetar, por exemplo, nossas deficiências, quer sejam físicas, quer mentais, quer morais, em um ou mais personagens de conto, novela, romance ou peça teatral que nosso talento nos possibilite produzir. Por isso que é quase consenso entre os escritores que escrever é, antes de tudo, um ato de coragem. É estar disposto a desnudar-se espiritualmente perante estranhos, a maioria dos quais jamais viremos a conhecer pessoalmente. Trata-se de um maiúsculo gesto de generosidade para com o próximo.

Mas podemos admitir nossas fraquezas e deficiências de forma mais intimista e bela. Como? Através de um poema. Como este "Epitáfio", do inglês John Howard:

"Tímido demais para vender
honesto demais para ensinar
calado demais para escrever
céptico demais para pregar
altivo demais para subir
cordato demais para lutar
rasteiro demais para cair
e velho demais para mudar.

Como veem, seria mesmo o cúmulo
eu reivindicar aqui um túmulo;
aquém do elogio, além do ultraje,
fui só o que estava de passagem".

Embora sem o talento de John Howard, há muito fiz idêntica descoberta. E bem que poderia, um dia, que espero que esteja ainda muito distante, ter esse enfático epitáfio...


* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk

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