Preço do egoísmo
O
egoísmo é, provavelmente, o mais arraigado sentimento humano e,
quando levado ao extremo, leva as pessoas a profundas decepções e
mágoas, que não se apagam jamais. E ainda assim, os egoístas não
se emendam e seguem achando que são o centro do mundo, quiçá de
todo o universo. Evidentemente, não são.
Há
quem ache que egoísmo seja sinônimo de amor próprio. Em certa
medida, é mesmo. Só que é esse sentimento, mas levado ao extremo.
É uma imensa distorção, uma aberrante falta de senso de proporção.
É mais, muito mais do que amor próprio. É autopaixão,
autoveneração, quase deificação de si próprio.
Estas
reflexões vêm a propósito de uma experiência (amaríssima) que
tive há uns oito ou nove anos e que me tornou mais descrente do que
já estava da minha espécie: a humana. Senti vontade de “pedir
demissão” dela e ser outro animal qualquer, movido exclusivamente
por instinto, caso isso fosse possível.
Numa
determinada sexta-feira, saí do trabalho, como sempre fazia, por
volta das 22 horas (exercia então a atividade de coordenador da
edição do Diário Oficial do Município de Campinas), cansado da
lide da semana, com muito frio e, sobretudo, faminto. Trafegava –
tendo minha mulher ao volante (ela que é a motorista da casa) –
por uma das principais e mais movimentadas avenidas da cidade, quando
me deparei com uma cena que me chocou e envergonhou e que, creio,
jamais irei esquecer enquanto viver.
Ao
passar em frente a um famoso restaurante desta grande metrópole
interiorana em que resido, a essa altura repleto de pessoas
saboreando seus sofisticados pratos – que faz divisa com uma
padaria, também com quantidade enorme de fregueses – observei, na
calçada ao lado, um homem, aparentando uns 40 anos de idade (deveria
ter bem menos), maltrapilho, sujo e magérrimo, revirando um enorme
latão de lixo de um dos estabelecimentos.
O
tal indigente retirava não plásticos e papéis para vender, como se
poderia supor, mas restos de comida, que devorava como se fossem o
manjar dos deuses. Ordenei, imediatamente, à mulher que parasse o
veículo. Queria comprar alguma coisa decente e dá-la ao infeliz
para comer. A esposa até que tentou. Mas... os motoristas que vinham
atrás, mesmo sendo noite, fizeram questão de promover um buzinaço
histórico, um alarido infernal, acompanhado de um coro de
impropérios contra nós dois. Não pudemos parar. Ninguém parou.
Apesar
do adiantado da hora, milhares de pessoas transitavam por aquela
calçada. Não vi nenhuma se deter sequer para olhar em direção ao
indigente. Passavam por ele como se fosse invisível, ou se tratasse
de um poste, de uma pedra ou de outro objeto qualquer. Certamente,
não agiriam assim nem diante de um cão. Segui para casa,
acabrunhado, triste, enojado e envergonhado, de mim, e do mundo.
Como
se pode admitir que um ser humano, dotado de espírito e de razão,
certamente com sonhos e vontades como eu, como você e como todos,
tenha que se submeter àquele vexame? E ele não procurava, no lixo,
nenhuma garrafa de cachaça ou de uísque, que certamente não
encontraria, para se embriagar, mas comida, mesmo que estragada,
contaminada sabe-se lá por quantas e quais bactérias, para saciar a
fome!
Muitos
poderiam dizer, para aplacar as consciências (se é que as têm):
“Deve ser um vagabundo. Por que não vai trabalhar?”. É fácil,
e cômodo, chegar a esse tipo de conclusão quando se está bem
alimentado, não raro superalimentado, bem agasalhado (estava um frio
de rachar nessa noite) e a bordo de um carrão do ano. O que essas
pessoas sabiam a respeito daquele infeliz? Quantas portas,
certamente, não lhe foram fechadas na cara, ao procurar ganhar
honestamente seu pão? Por quanta humilhação não teve que passar?
Quanto preconceito não esteve envolvido na forma com que o trataram?
Ademais,
mesmo que se tratasse de algum vagabundo (não creio que fosse), este
é motivo suficiente para se ver obrigado a esse ato de suprema
carência, que é o de procurar comida no lixo? Esse pobre infeliz
não estava roubando (e ademais, se o fizesse, naquele momento,
sequer seria crime, pois teria a atenuante da “extrema
necessidade”, embora algum imbecil certamente o encarcerasse e
jogasse a chave fora como se fosse o mais perigoso bandido) e sequer
estava ameaçando ou constrangendo quem quer que fosse. Estava se
limitando a exercer, no seu máximo limite, o instinto de
sobrevivência.
Que
vergonha senti, naquele momento, e sinto ainda hoje!. Que nojo desse
sistema, desse arremedo de civilização, desse engodo denominado
humanidade, que permite que cenas como essa aconteçam e se repitam
em profusão em tantas e tantas partes do mundo. Em essência, no que
somos melhores do que aquele maltrapilho indigente? Somos imortais?
Claro que não! Levaremos para além-túmulo estas bobagens a que
damos tão grande valor e que não passam de quinquilharias, a que
chamamos de “riqueza”? Também não!
Não
me admiro, pois, que haja tanta gente solitária, amarga e entendiada
no mundo. Não me admiro mais do fato de haver tanta tristeza planeta
afora. Esse é o preço que os egoístas têm, e sempre terão, que
pagar por sua autoveneração, que chega a descambar para a
autodeificação. Chego a esta conclusão baseado nisto que Anatole
France um dia escreveu: “Estar triste é, quase sempre, pensar em
si mesmo”. Bem feito, pois, por esta tristeza que, certamente, é
muitíssimo menor do que a do indigente que saciou a fome com os
restos que colheu numa lata de lixo!
Boa
leitura!
O
Editor.
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