quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Para que servem os museus? - Mara Narciso


Para que servem os museus?


* Por Mara Narciso
 
As grandes perdas têm um efeito catártico, de purgação e purificação, que vem num assombro, numa implosão, num olhar pra dentro e que culmina numa mortificação ou reflexão profunda, redescobertas e encontro de novos caminhos. Muitas vezes estreitos, tortuosos, com precipícios, nos quais vão sendo construídos guarda-corpos, e por fim, será possível, lá do topo, vislumbrar a bela paisagem.
 
O Museu Nacional do Rio de Janeiro, fundado por Dom João VI em seis de agosto de 1818, de perfil acadêmico e científico, virou cinzas no dia dois de setembro de 2018. Pode ser que 10% do seu acervo sejam recuperados precariamente. Duzentos anos de História e de preciosidades desapareceram. A consternação tomou conta das mentes conscientes, enquanto eternas vozes discordantes garantiam sentir alívio por não precisar gastar dinheiro com velharias inúteis, afinal para que serve um museu senão para juntar pó, ferrugem, traças e outros bichos? Inutilidade total, zombavam do passado os usuários das redes sociais.
 
O mundo é dual e a imbecilidade tornou-se o lado maior e mais forte dessa dualidade. A lógica ficou subitamente invertida. Os fatos apresentam-se com dois pontos de vista contraditórios, com grupos que se odeiam e falam mentiras, mostrando ao lado contrário, aparentes provas indiscutíveis. Há o bem e o mal, os durões e os sensíveis e grupos que se organizam, num amplo espectro de intolerância. Não existe unanimidade em nada, sem chance de se errar pelo exagero.
 
Do acervo irremediavelmente perdido constavam 20 milhões de itens de Antropologia e História Natural, entre eles o Fóssil de Luzia, de 12 mil anos, o Meteorito de Bendegó (1888), o dinossauro Maxakalisaurus topai, o caixão egípcio de Sha-Amun en su, múmias egípcias e sulamericanas, Os Lusíadas em sua primeira edição, o Documento de Assinatura da Lei Áurea, a Declaração da Independência do Brasil, toda sorte de objetos, móveis e vestimentas, coleção iniciada pela Família Real Brasileira.
 
Deixando os para sempre desaparecidos, quantos museus você já visitou? Como estava o grau de conservação, acomodação e segurança das peças? Como foi seu comportamento lá? Teve o devido respeito aos antepassados? Não chegamos aqui agora e atrasados, a agenda está lotada por nossa própria escolha. Não temos tempo para contemplar o passado com a devida reverência, porque temos muito a fazer. Quem nos deixou chegar aqui?  Estamos no século XXI sobre os ombros de quem? Em cima de ações e construções dos nossos antepassados. Estamos sobre nossa ascendência, e sem eles nosso grau de civilização seria outro. Não somos nada sozinhos, e se podemos ter uma vida, foi porque nossos antepassados estiveram por aqui.
 
Os museus existem para preservar a História, é obvio, mas é preciso construir no presente algo notável para virar passado. Muitos fatos são História, mas trazem vergonha à humanidade. Há o Museu do Holocausto. Há outros museus da vergonha. Estamos construindo o presente de forma digna? Estamos primando pela verdade, sinceridade, respeito, amor? Não existe lugar neste mundo para esse sentimento de fracos? O seu presente é algo que valerá a pena contar aos seus descendentes? Que tal ser bom? O habitual é dar uma resposta cortante? Não deixar provocação sem resposta? Quem ganhará com isso? Caso ganhe, será exatamente o quê? Será algo digno de estar num museu daqui a 200 anos? Isso se o homem não se autodestruir, negligenciando e tocando fogo na Terra como fez com o Museu Nacional do Rio.
 
É velho? É antigo? É desinteressante? Estude, aprenda, e saiba que há museus modernos. Cazuza disse: “eu vejo o futuro repetir o passado, eu vejo um museu de grandes novidades, o tempo não para” (1988 – Cazuza e Arnaldo Brandão – “O tempo não para”). Foi profético, mencionando o distanciamento da repressão, porém com a persistência de uma sociedade moralista e conservadora. Que as novidades sejam boas, que sirvam aos museus do futuro, e que saibamos preservar aquilo que foi tão nosso.

* Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”


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