A
raça pura: que Brasil você quer
para o passado?
*
Por José Ribamar Bessa Freire
Levanta
a mão aí quem já ouviu falar da Revista
do Brasil (RB)?
Ela era porta-voz da Liga Nacionalista de São Paulo e foi
fundada em 1916 por Júlio de Mesquita, dono do Estadão.
Estou dando uma de sabichão, mas confesso que ignorava sua
existência até a semana passada, quando li o texto de Julieta
Figueiredo, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem
e Biociências da UNIRIO. Ela pesquisa o tratamento dado pela revista
às políticas de eugenia e de saneamento, com foco na fase em que
foi dirigida por Monteiro Lobato, então seu proprietário (1918 a
1925).
A
RB se antecipou em cem anos ao Jornal Nacional da TV Globo,
formulando de uma certa forma a pergunta: Que Brasil você quer para
o futuro? Suas páginas abrigavam articulistas, muitos deles da
Academia Nacional de Medicina, que em nome da ciência, davam
repostas sobre o Brasil do futuro, ou seja, aquele em que agora
vivemos. A “solução” para o país seria “melhorar a raça
brasileira”, com políticas destinadas a selecionar os tipos
eugênicos – os sadios bem nascidos - e separá-los dos degenerados
e dos imigrantes africanos e asiáticos. A “nação do futuro”
teria o predomínio da “raça branca”.
Como
conseguir isso? Em busca de respostas, o movimento desembocou no I
Congresso Brasileiro de Eugenia, em 1929, do qual participaram
bacteriologistas, microbiologistas, médicos, psiquiatras,
antropólogos, engenheiros,
agrônomos, jornalistas e professores. Mas a proposta de Azevedo
Amaral de proibir a entrada de negros no país foi derrotada por três
votos de diferença. O físico Oscar Fontenelle pediu recontagem de
votos, defendendo o modelo norte-americano que “protegeu a sua raça
de imigração japonesa e negra”.
Falsa
ciência
De
qualquer forma, cinco anos depois, a Constituição brasileira de
1934, que sofreu influência da política norte-americana do New
Deal, em seu artigo 138, estabelecia que a União, os Estados e os
Municípios deveriam “estimular
a educação eugênica”.
O
negro, o índio e a mulher, considerada incapaz física e
organicamente, foram alvo dos discursos eugênicos apresentados na
RB. Os negros aparecem como dotados de “inteligência inferior,
falsos, desconfiados, mentirosos e devassos”, os índios como
“indolentes e selvagens primitivos”. Os imigrantes não
europeus eram “indesejáveis”, com cobrança de multas pesadas
aos comandantes de navios que os transportassem. Lobato ampliou a
rede de venda da revista em 300 livrarias espalhadas pelo país e
quase 2 mil distribuidores em farmácias, padarias e lojas de varejo.
Para
atingir um público, cuja população era formada por 75% de
analfabetos, a RB usou e abusou de charges e caricaturas racistas
ofensivas à inteligência e à espécie humana. Uma delas mostra uma
mulher que, espancadapelo
marido, se queixa à sua mãe, que lhe diz: “Queres
que vingue a bofetada que teu marido te deu? Pois bem, dou-te outra.
Porque se ele bateu em minha filha, eu bato também na mulher
dele”. Esse
era o Brasil que queriam para o futuro. Está aí o Bolsonaro que não
me deixa mentir.
A
eugenia no Brasil investiu pesado na identidade feminina, com claro
viés racista: “Muito
sultão tem trocado quatro esposas morenas por uma loira e não
consta que tenham se arrependido”
garante um articulista no número de 1921 da RB. Monteiro Lobato
comentou: “Embora
reconhecendo as queixas que a mulher tem do macho, sem o concurso
dele nada valeríamos no mundo. Viva o macho forte que suplantou o
macho fraco”.
Embora
a Revista do Brasil não reservasse espaço para opiniões
contrárias, havia, porém, quem discordasse dessas concepções de
eugenia, confirmando o que afirma Foulcault: “Onde
tem poder, tem
resistência”. Um
dos opositores foi o médico sergipano Manoel Bonfim, que chamou a
eugenia de “falsa ciência”, desmascarando o racismo científico
em seu livro “A América Latina: males de origem”. O outro foi o
antropólogo Roquette-Pinto para quem “o mestiço tem plenas
condições de povoar o país” e que nenhum dos tipos classificados
por ele “apresentavam qualquer tipo de degeneração”.
Os
degenerados
A
doutoranda se apoiou em vários autores com estudos recentes sobre o
assunto como Tânia R. de Luca, Maria InêsCampos,
Pietra Diwan e outros. Um deles, Valdeir Del Cont (2013), cientista
social da Unicamp, dá pistas sobre a fonte inspiradora dos artigos
da RB, com uma citação assustadora, que ecoa ainda hoje nas vozes
de candidatos a presidente e vice-presidente da República:
“Os
ideais eugênicos encontraram nos Estados Unidos terreno fértil para
sua proliferação, sob a tutela do geneticista Charles Benedict
Davenport. Ele calculava que pelo menos 10% da população americana
era formada por degenerados que, por isso, deveriam ser identificados
e catalogados, com o objetivo de tomar as devidas precauções para
interromper a cadeia reprodutiva, seja por segregação em campos ou
fazendas ou por esterilização. Participavam dessa lista:
criminosos, surdos, cegos, mudos, débeis mentais, epilépticos,
tímidos, introvertidos, calados, gagos e os que falavam inglês de
forma incorreta”.
Fiquei
com meu “pescoço em francês” na mão, bem apertadinho, porque
me enquadro em várias dessas categorias de degenerados, inclusive
com meu inglês macarrônico. Mas o preconceito do “inglês
incorreto” era direcionado ao “black
english” falado
pelos negros nos
Estados
Unidos, cuja legitimidade como uma das variantes do inglês americano
marcado pelo contato com línguas africanas, foi reconhecida pelos
estudos do sociolinguista William Labov, em 1969, que destacou seu
papel na música e na literatura.
É
phoda!
No
Brasil – informa a doutoranda – o médico Renato Kehl, voltou da
Alemanha com pensamentos eugênicos radicais, afirmando que o
saneamento por si só não resolveria os problemas do nosso país,
cujo povo em sua maioria “apresentava uma genética degenerada”.
O saneamento, defendido por alguns intelectuais como Roquette Pinto,
“não atingia a genética do ser humano” - contrapõe Kehl, que
pregava a separação dos tipos eugênicos, o controle da imigração,
a esterilização dos degenerados e o branqueamento da população a
partir do “matrimônio correto”.
Em
carta a Renato Kehl, que era o pai da eugenia no Brasil, Monteiro
Lobato diz: “Precisamos
lançar, vulgarizar estas ideias. A humanidade precisa de uma coisa
só: poda. É como a vinha”. Quando
deixou a direção da RB, em 1926, antes de viajar para os Estados
Unidos, escreveu “O
choque de raças ou o presidente negro”, romance
no qual descreve o “conserto do mundo pela eugenia”, onde a “raça
branca superior” extermina a “raça negra, inferior”, através
da esterilização.
O
escritor que alegrou a nossa infância com suas histórias, nos
entristece com suas propostas racistas. É phoda mesmo! Cem anos
depois da Revista
do Brasil defender
seu projeto de nação, ao ouvir o capitão Jair Bolsonaro e o
general Mourão, podemos dizer que o futuro chegou? Qual o Brasil que
você quer para o passado?
P.S.1
- Julieta Brittes Figueiredo. Revista
do Brasil: as representações eugênicas/higiênicas da saúde no
período lobatiano (1918-1925). Programa
de Pós-Graduação emEnfermagem
e Biociências da UNIRIO. Banca de qualificação (17/09/2018):
Wellington Amorim (orientador), Tânia Maria de Almeida Silva`,
Lilian Fernandes Ayres, Fernando Porto e José R. Bessa.
P.S.
2 - Parte deste texto foi apresentado oralmente na sexta-feira (21)
durante o Seminário Educação e Resistência comemorativo dos 40
anos da Escola Oga Mitá. Da mesa em homenagem a Marielle Franco,
assassinada há 6 meses, sem que até hoje tenham sido identificados
os autores do crime, participaram Mônica Sacramento, professora da
UFF; Mônica Francisco, cientista social e candidata a deputada
estadual (PSOL 50888); e este locutor que vos fala. A mediação foi
feita pela escritora Ana Paula Lisboa. Éramos ali, com muita honra,
quatro mulheres negras, além da presença de Marielle.
*
Jornalista e historiador.
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