segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Depois de tudo - Emanuel Medeiros Vieira


Depois de tudo


* Por Emanuel Medeiros Vieira


Quando morto estiver meu corpo, evitem os inúteis disfarces os disfarces com que os vivos procuram apagar no morto o grande castigo da morte (…)
Descubram bem minhas mãos!
Meus amigos, olhem as mãos!
Onde andaram, o que fizeram, em que sexos demoraram seus dedos sabidos?
(…) Quero ser um tal defunto, um morto tão acabado, tão aflitivo e pungente que possam ver, os meus amigos, que morre-se do mesmo jeito como se vão os penetras escorraçados, as prostitutas recusadas, os amantes despedidos, que saem enxotados mas voltariam sem brio a qualquer gesto de chamada.
Meus amigos, tenham pena – senão do morto ¬- ao menos dos dois sapatos do morto. Olhem bem para eles. E para os vossos também!”
(PEDRO NAVA (1903-1984) - (“O Defunto”)


Depois de tudo. Quando será? Sempre acreditamos que nos salvaremos pela memória. Como saberemos?

A vida é menos heroica, não napoleônica.

É só ela. Nascer do sol, pôr do sol. E escrevemos. Todos já escreveram.

São toneladas de meditações. E, no fundo, nunca entendemos.

Nunca entenderemos.

O que queria dizer? Tudo e nada. E o que consegui escrever, é quase menor do que a epígrafe de mestre Pedro Nava (bem melhor,¬ diz tudo e não engana ninguém).

Porque na vida social precisamos de disfarces, blindagens, camuflagens, representações, máscaras.

Alguém disse que envelhecer não é para frouxos.

Estar doente, com enfermidade incurável, também não é.

Uma pessoa pediu que eu tivesse mais fé.

Para quem não está doente, está fora de ti e das tuas dores diárias, é mais fácil…

Nós sabemos (e NÃO queremos “saber”) QUE TODA A DOR HUMANA É INTRANSFERÍVEL.

Ninguém carregará os nossos trambolhos e fardos ¬ por mais solidariedade que tiverem.

Não tenho mais idade (ou paciência) para dissimulações.

O ser que me pediu mais fé talvez tenha razão.

Mas somos o que somos.

Há que viver cada dia (e ainda agradecer).

Existem seres amados, sol, um pássaro.

Viver também não é fácil ¬ e só digo um clichê, uma platitude, nada de novo.

O diabo sempre ri para mim e pergunta-me se o Deus que me foi ensinado não irá aliviar as minhas dores…

Eu fico em silêncio e, no geral, leio um poema e (pelas minhas raízes) a oração de São Miguel Arcanjo, e tento rezar a prece de São Francisco de Assis, que sempre foi o santo de minha predileção. Seria bom ter a fé de guri.

Lamento (mesmo tendo ido à Itália três vezes - na primeira, fugindo da nossa ditadura- não ter ido à cidade natal de Francisco). Ficará para uma outra vida… E ninguém quer ir embora…

Como disse o bardo inglês (tantas vezes citado) “o resto é silêncio”. Depois de tudo…


(Brasília, setembro de 2018)


* Romancista, contista, novelista e poeta catarinense, residente em Brasília, autor de livros como “Olhos azuis – ao sul do efêmero”, “Cerrado desterro”, “Meus mortos caminham comigo nos domingos de verão”, “Metônia” e “O homem que não amava simpósios”, entre outros. Foi indicado ao Prêmio Nobel de Literatura de 2018.

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