Eleição
democrática do terror
*
Por Frei Betto
Ele
nada entendia da situação real do país. Nem demonstrava interesse
por ela, embora atuasse ativamente na política. Por isso não
gostava de ser questionado, irritava-se diante das perguntas como se
fossem armas apontadas em sua direção. Não queria que a sua
ignorância se tornasse explícita.
Ser
estranho, ele tinha olhos alucinados afundados nas órbitas, lábios
espremidos, gestos cortantes. Todo o seu corpo era rígido, como se
moldado em armadura. Ao ficar na defensiva, parecia uma fera acuada.
Ao passar à ofensiva, a fera exibia garras afiadas e de suas
mandíbulas pingava sangue.
Sua
fala exalava ódio, rancor, preconceito. Aliás, não falava,
gritava. Não sabia sorrir, tratar alguém com delicadeza, ter um
gesto de cortesia ou humildade. Evitava ao máximo os repórteres.
Julgava suas perguntas invasivas. E temia que a sua verdadeira face
antidemocrática transparecesse em suas respostas.
Educado
em fileiras militares, aprendera apenas a dar e cumprir ordens,
enquadrar quem o cercava e ultrajar quem se opunha às suas opiniões.
Jamais aceitava o contraditório ou praticava um mínimo de
tolerância. Considerava-se o senhor da razão.
A
nação estava em frangalhos, mergulhada em crise ética, política e
econômica, e o horizonte da esperança espelhado em trevas. Pelo
país afora havia milhares de desempregados, criminalidade
generalizada, corrupção em todas as instâncias de poder. O câmbio
disparara, a moeda nacional perdia valor, o descontentamento era
geral. O governo carecia de credibilidade e se via cada vez mais
fragilizado. O povo clamava por um salvador da pátria.
Jovens
desesperançados viam nele um avatar capaz de inaugurar a idade de
ouro. Era ele o cara, surfando na descrença generalizada na política
e nos políticos. O Executivo se debilitara por corrupção e
incompetência, o Legislativo mais parecia um ninho de ratos, o
Judiciário se partidarizara submisso a interesses escusos.
Ele
se dizia cristão, e se considerava ungido por Deus para livrar o
país de todos os males. Advogava soluções militares para problemas
políticos. Movido pela ambição desmedida, se apresentou como
candidato à eleição democrática para ocupar o mais alto posto da
República, embora ostentasse a patente de simples oficial de baixo
escalão do Exército.
De
sua oratória raivosa ressoava o discurso agressivo, bélico, insano.
Haveria de modificar todas as leis para implantar uma ordem marcial
que poria fim a todas as mazelas do país. Eleito, seria ele o
comandante-em-chefe, e todos os cidadãos passariam a ser tratados
como meros recrutas obrigados a cumprir estritamente as suas ordens.
Prometia
fortalecer o aparato policial e as Forças Armadas. Sua noção de
justiça se resumia a uma bala de revólver ou a um tiro de fuzil.
Eleito, excluiria da vida social um enorme contingente de pessoas
consideradas por ele sub-humanos e indesejáveis, mulheres,
homossexuais, trabalhadores em luta por seus direitos e comunistas.
Todos que se opunham às suas opiniões eram por ele apontados como
bodes expiatórios da desgraça nacional.
Seu
mandato presidencial haveria de trazer a era de fartura e
prosperidade. Reergueria a economia e asseguraria oportunidades de
trabalho a todos. Exaltaria os privilégios do capital sobre os
direitos dos trabalhadores. Aqueles que o seguissem seriam felizes, e
livres para sobrepor a lógica das armas ao espírito das leis. Os
demais, excluídos sumariamente do convívio social.
Enfim,
após uma série de manobras políticas e forte repressão às forças
adversárias, ele foi eleito chefe de Estado. A nação entrou um
júbilo. O salvador havia descido dos céus! Ou melhor, brotado das
urnas. Tudo isso aconteceu há 85 anos, em 1933. Na Alemanha
alquebrada pela derrota na Primeira Grande Guerra. O nome dele era
Adolfo Hitler.
*
Frei Betto é escritor, autor de “O que a vida me ensinou”
(Saraiva), entre outros livros.
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