sábado, 4 de agosto de 2018

O Haiti que conheço - Fábio de Lima


O Haiti que conheço


* Por Fábio de Lima


Não haveria jornalistas se não houvesse pessoas. Por isso, pego minha caneta e vou até a latrina. Eu quero sentir cheiro de gente. (Erich Gutiérrez)

Nas pequenas cidades nordestinas o calor não vem só do sol. Aquela terra vermelha é quente feito brasa. As rachaduras no solo parecem rugas de uma mulher mal cuidada. Os velhos usam chapéu. As velhas usam lenço na cabeça. Os jovens querem a cidade grande igual puta quer o dinheiro do cliente. As crianças nordestinas se dividem em homens e mulheres: os homens de 7 anos dirigem um caminhão feito de lata e miséria. As mulheres de 7 anos cozinham feijão verde e miséria. Elas sonham com o dia que serão mães e esposas e, talvez, tudo seja diferente. A miséria nordestina tenha sido apenas uma ilusão da cabeça fértil de crianças sonhadoras, peraltas e felizes.

Eu estava lá. Ninguém me contou. A cidade é a pequena Uibaí, no interior baiano. Clóvis, conhecido como Clóvinho, ainda esticava os fios de seu bigode ralo de moleque atrevido com 16 anos de desperdício. Mas, mesmo assim, o moleque já andava com uma faca reluzente pendurada no cinturão. Com aquele cinturão amarrava a calça ainda folgada que seu irmão, Pedro, havia lhe mandado de São Paulo, onde trabalhava na construção civil. Pedro era meia colher, como dizia nas cartas. Clóvinho não sabia o que era isso, mas sentia saudade do irmão.

Denival era homem feito. Apesar de seus 23 anos de idade apenas, já era pai de 3 filhos. Sandrinho já estava com 6 anos e era filho de Denival com uma rapariga que morava em Salvador. Loucuras da juventude. Acácio tinha 4 anos e era filho de sua mulher legítima, Rosa, com quem Denival casou quando tinha apenas 18 anos. Acácia tinha apenas 1 ano e era a mais nova paixão do casal. Denival vendia farinha na feira. Homem bruto, pobre nas palavras, mas trabalhador como doido – se é que doido consegue trabalhar como se deve.

A peleja começou na mercearia de seu Osvaldo, com v mesmo. Eu sei que tudo começou por causa de um jogo entre Vasco e São Paulo, pelo Campeonato Brasileiro de Futebol. Todo mundo assistindo o jogo no televisor da mercearia. Seu Osvaldo gostava de futebol, mas não gostava de confusão. Nesse sábado à tarde não teve jeito. Nada foi possível para se evitar as agruras do destino. Clóvinho disse que o Renato Gaúcho, técnico do Vasco, parecia viado – assim como todo torcedor do clube carioca. Denival disse que viados eram os torcedores do São Paulo que lá no sul, leia-se sudeste, caro leitor, até eram chamados de bambis. Isso bastou para uns xingamentos e empurrões. Tudo aparentemente resolvido por seu Osvaldo e outros guardiões da boa vizinhança. Mas, na hora que um falou mal da mãe do outro o calor em Uibaí ficou insuportável.

Eu estava na cidade para entrevistar um tal de Zé Bahia, conhecido na região por suas emboladas, repentes. Nessa hora vi me alumiar uma luz de prata pontuda passando na frente dos meus olhos, descendo como um raio que ilumina e queima o céu numa fração de segundos. Clóvinho golpeou Denival no pescoço – enquanto que Denival revidou na boca do estômago, se é que estômago tem boca. Foi sangue e grito para tudo quanto é lado. Nesse momento eu pulei e gritei: meu Deus! Embora não tivesse um espelho grande e bonito na mercearia de seu Osvaldo – sei que fiquei mais branco que roupa de médico. O povo gritava socorre! Os dois lutadores caiam engalfinhados e melados do sangue um do outro. O jogo no televisor era morno – mas a peleja dos dois brigador (sic) era disputada que nem briga de galo – quente como a pornografia dos quartos de mosteiros.

Acho que tudo não demorou mais que 30 ou 40 segundos – mas eu vi minha vida inteira passar no brilho das peixeiras daqueles moleques. Tive notícias, dias depois, que ambos morreram. Clóvinho não torcerá mais para o São Paulo e nem trabalhará na construção civil, como seu irmão. Denival não torcerá mais para o Vasco e nem ensinará Sandrinho a peneirar farinha. O calor em Uibaí me deu uma insolação danada. Passei mais de uma semana me sentindo mal depois daquela viagem. O Brasil é maior que São Paulo ou Rio de Janeiro, caro leitor. O Brasil tem cara de Bahia, Pernambuco e Paraíba também. O Brasil tem cheiro de miséria e sangue no ar. O Brasil de verdade é igual ao Haiti sem uma seleção brasileira de futebol.

Eu penso duas vezes para usar as palavras. Acho que penso mil vezes na hora de usá-las para reproduzir minhas verdades. Mas na vida não há tempo para se pensar tanto. (Erich Gutiérrez)

(*) Jornalista e escritor ou “contador de histórias”, como prefere ser chamado. É Diretor de Programação da CINETVNET (www.cinetvnet.com.br), TV pela internet. Está escrevendo seu primeiro romance, DOCE DESESPERO.




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