O Haiti que conheço
*
Por Fábio de Lima
Não
haveria jornalistas se não houvesse pessoas. Por isso, pego minha
caneta e vou até a latrina. Eu quero sentir cheiro de gente. (Erich
Gutiérrez)
Nas
pequenas cidades nordestinas o calor não vem só do sol. Aquela
terra vermelha é quente feito brasa. As rachaduras no solo parecem
rugas de uma mulher mal cuidada. Os velhos usam chapéu. As velhas
usam lenço na cabeça. Os jovens querem a cidade grande igual puta
quer o dinheiro do cliente. As crianças nordestinas se dividem em
homens e mulheres: os homens de 7 anos dirigem um caminhão feito de
lata e miséria. As mulheres de 7 anos cozinham feijão verde e
miséria. Elas sonham com o dia que serão mães e esposas e, talvez,
tudo seja diferente. A miséria nordestina tenha sido apenas uma
ilusão da cabeça fértil de crianças sonhadoras, peraltas e
felizes.
Eu
estava lá. Ninguém me contou. A cidade é a pequena Uibaí, no
interior baiano. Clóvis, conhecido como Clóvinho, ainda esticava os
fios de seu bigode ralo de moleque atrevido com 16 anos de
desperdício. Mas, mesmo assim, o moleque já andava com uma faca
reluzente pendurada no cinturão. Com aquele cinturão amarrava a
calça ainda folgada que seu irmão, Pedro, havia lhe mandado de São
Paulo, onde trabalhava na construção civil. Pedro era meia colher,
como dizia nas cartas. Clóvinho não sabia o que era isso, mas
sentia saudade do irmão.
Denival
era homem feito. Apesar de seus 23 anos de idade apenas, já era pai
de 3 filhos. Sandrinho já estava com 6 anos e era filho de Denival
com uma rapariga que morava em Salvador. Loucuras da juventude.
Acácio tinha 4 anos e era filho de sua mulher legítima, Rosa, com
quem Denival casou quando tinha apenas 18 anos. Acácia tinha apenas
1 ano e era a mais nova paixão do casal. Denival vendia farinha na
feira. Homem bruto, pobre nas palavras, mas trabalhador como doido –
se é que doido consegue trabalhar como se deve.
A
peleja começou na mercearia de seu Osvaldo, com v mesmo. Eu sei que
tudo começou por causa de um jogo entre Vasco e São Paulo, pelo
Campeonato Brasileiro de Futebol. Todo mundo assistindo o jogo no
televisor da mercearia. Seu Osvaldo gostava de futebol, mas não
gostava de confusão. Nesse sábado à tarde não teve jeito. Nada
foi possível para se evitar as agruras do destino. Clóvinho disse
que o Renato Gaúcho, técnico do Vasco, parecia viado – assim como
todo torcedor do clube carioca. Denival disse que viados eram os
torcedores do São Paulo que lá no sul, leia-se sudeste, caro
leitor, até eram chamados de bambis. Isso bastou para uns
xingamentos e empurrões. Tudo aparentemente resolvido por seu
Osvaldo e outros guardiões da boa vizinhança. Mas, na hora que um
falou mal da mãe do outro o calor em Uibaí ficou insuportável.
Eu
estava na cidade para entrevistar um tal de Zé Bahia, conhecido na
região por suas emboladas, repentes. Nessa hora vi me alumiar uma
luz de prata pontuda passando na frente dos meus olhos, descendo como
um raio que ilumina e queima o céu numa fração de segundos.
Clóvinho golpeou Denival no pescoço – enquanto que Denival
revidou na boca do estômago, se é que estômago tem boca. Foi
sangue e grito para tudo quanto é lado. Nesse momento eu pulei e
gritei: meu Deus! Embora não tivesse um espelho grande e bonito na
mercearia de seu Osvaldo – sei que fiquei mais branco que roupa de
médico. O povo gritava socorre! Os dois lutadores caiam
engalfinhados e melados do sangue um do outro. O jogo no televisor
era morno – mas a peleja dos dois brigador (sic) era disputada que
nem briga de galo – quente como a pornografia dos quartos de
mosteiros.
Acho
que tudo não demorou mais que 30 ou 40 segundos – mas eu vi minha
vida inteira passar no brilho das peixeiras daqueles moleques. Tive
notícias, dias depois, que ambos morreram. Clóvinho não torcerá
mais para o São Paulo e nem trabalhará na construção civil, como
seu irmão. Denival não torcerá mais para o Vasco e nem ensinará
Sandrinho a peneirar farinha. O calor em Uibaí me deu uma insolação
danada. Passei mais de uma semana me sentindo mal depois daquela
viagem. O Brasil é maior que São Paulo ou Rio de Janeiro, caro
leitor. O Brasil tem cara de Bahia, Pernambuco e Paraíba também. O
Brasil tem cheiro de miséria e sangue no ar. O Brasil de verdade é
igual ao Haiti sem uma seleção brasileira de futebol.
Eu
penso duas vezes para usar as palavras. Acho que penso mil vezes na
hora de usá-las para reproduzir minhas verdades. Mas na vida não há
tempo para se pensar tanto. (Erich Gutiérrez)
(*)
Jornalista e escritor ou “contador de histórias”, como prefere
ser chamado. É Diretor de Programação da CINETVNET
(www.cinetvnet.com.br), TV pela internet. Está escrevendo seu
primeiro romance, DOCE DESESPERO.
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