Sacrifício
do cavalo
*
Por Graça Aranha
Ao
amanhecer de um dia nevoeiro, a paisagem perdera o seu contorno exato
e regular. As linhas definitivas dos objetos se confundiam, as
montanhas enterravam as cabeças nas nuvens, a cabeleira das árvores
fumegava, o rio sem horizonte, sem limite, como uma grande pasta
cinzenta, se ligava ao céu baixo e denso. O desenho se apagara, a
bruma mascarava os perfis das coisas e o colorido surgia com a sombra
numa sublime desforra. Por toda a parte manchas esplêndidas se
ostentavam. E sobre a campina esverdeada, vaporosa, uma dessas
manchas, ligeiramente azulada, movia-se, arqueava-se, abaixava-se,
erguia-se e se ia lentamente dissipando. O sol não tardou a vir, e a
natureza se sacudiu, a névoa fugiu, o céu se espanou e se dilatou
em maravilhosa limpidez. A mancha móvel sobre a planície se definiu
no perfil de um pobre cavalo que passeava na verdura os seus olhos de
velhice e fadiga, tristes e longos. De passada, com os túmidos e
negros beiços, afagava a erva, triturando-a com fastio e desânimo,
enquanto a sua atenção de cavalo experimentado estava voltada para
a cabana, a cuja porta os seus donos, os novos colonos magiares, o
miravam com interesse. A neblina leve, veloz, vinha distraí-lo
daquela postura de curiosidade humilde, e acariciava num frio
elétrico o seu pelo ralo e falhado. Estremecia num gozo manso, e
estendendo o focinho, arregaçando os beiços, sensual e grato,
beijava o ar. Não mais encontrava a névoa, que fugira para os
montes, levada pela brisa, como se fosse o imperceptível véu que
envolvesse alguma deusa errante e retardada. Um rio de sol, porém,
descera a brincar-lhe nos olhos e incendiava-lhe a pupila. Meiguices
da natureza.
Um
dos jovens magiares, levando uma corda, caminhou para o cavalo. O
animal entregou-lhe a cabeça numa mistura de abandono e tédio. O
rapaz passou-lhe o cabresto e o levou ao poste fronteiro à casa,
onde o amarrou. Os colonos tinham resolvido principiar naquele dia a
plantação do seu prazo, e o velho deu ordem de partir para a
queimada. Os filhos armaram-se das ferramentas de lavoura, o cigano,
saindo de sua modorra e apenas armado de um chicote, acompanhou os
outros, que, desamarrando o cavalo, seguiram com ele para o roçado.
As raparigas que ficavam em casa cheias de instintivo pavor, viam o
grupo afastar-se vagarosamente.
Chegaram
ao aceiro que, aberto como uma larga ferida sobre o dorso da terra,
era um sulco de alguns metros de largura, circundando a queimada. Da
mata carbonizada ainda resistiam de pé alguns troncos despojados,
enegrecidos. Milkau e Lentz, passeando àquela hora, passaram perto
do roçado e viram chegar aí o grupo dos vizinhos.
-
Ainda bem, disse Milkau, eles vão trabalhar; fazia-me dó ver esta
gente apática, irresoluta, entorpecida na preguiça.
-
Mas para que trazem eles quase arrastado aquele cavalo? Perguntou
Lentz.
E
os dois se afastaram um pouco e ficaram a distância, acompanhando os
movimentos do grupo.
O
velho colono segurou o animal pelo cabresto e o colocou no meio da
vala. Os filhos puseram-se de lado, num recolhimento religioso. O pai
puxou o cavalo para a frente. De chicote em punho, o cigano seguia
atrás, e a primeira vergastada, cortando o ar num sibilo, caiu em
cheio sobre o animal. Este, como arrancando-se de si mesmo, pinoteou
assustado. Novas lambadas foram arremessadas por mão vigorosa.
Estirou o cavalo o pescoço para a frente, abaixou-se, alongou-se,
encostando quase o ventre à terra, como para se libertar do flagelo
que lhe vinha do alto. Os seus membros se estorciam, confrangidos sob
a dor imensa. E desapiedadamente, puxavam-no para diante, levando-o
ao furor do açoite. Naquele sacrifício cumpria-se uma missão
sagrada: ligava-se à nova terra o nervo da tradição da terra
antiga. Quando os antepassados tártaros desceram do planalto
asiático, e no solo europeu renunciaram à vida errante dos
pastores, para lavrar o campo e buscar na cultura a satisfação da
vida, sacrificaram aos deuses o velho companheiro de peregrinação
nos brancos estepes. E, assim, a imolação ficou sempre no espírito
dos descendentes como um dever, cujas raízes se estendem até ao
fundo da alma das raças.
Continuava
o grupo a caminhar. O velho, como um sacerdote, conduzia a vítima,
seguida do cigano, em cujo rosto se recompunha a antiga expressão
infernal e terrível dos antepassados, num retrocesso harmônico e
rápido, produzido pelo singular efeito da paixão sanguinária. Os
outros assistiam mudos à cerimônia. O chicote vibrava incessante;
as suas pontas de ferro cortavam o lombo do animal. O ar leve e frio,
penetrando nos fios de carne viva, causava uma dor fina, aguda,
acerba, e a vista e o cheiro do sangue excitavam ainda mais a energia
do flagelador. Veio-lhe uma histérica insensibilidade, uma
rudimentar anestesia, uma assassina obsessão. Estonteou-o uma
vertigem, mas o açoite não parou. Os sulcos na carne se abriam mais
fundos; o sangue escorria frouxo. Mofino de dor, o cavalo prosseguia
arrastado, regando a terra. Gotas vermelhas respingavam sobre a
descoberta cabeça do velho magiar, de uma brancura de açucena. As
suas narinas se dilatavam em lânguido gozo. Cavos gemidos ressoavam
no peito da besta. E no seu olhar infinito de moribundo se traduziam
os humildes protestos e os tímidos apelos de misericórdia.
E
o relho soava, enquanto o mártir ia lento, de pescoço estirado,
pernas trôpegas, esvaindo-se pelas veias abertas, como torneiras de
sangue. O cigano mais terrível, mais feroz, transfigurava-se, e da
sua garganta afinada irrompeu brusco, sonoro, o canto de guerra dos
velhos tártaros. O chicote cruel e rápido marcava o compasso desse
ritmo estranho. O contágio do furor se apoderou dos outros, que,
imobilizados, assistiam ao sacrifício. E embriagados pouco a pouco
pelas frases da música, pela sugestão do rito, pelo odor de carne
sangrenta, acompanhavam o canto, num coro infernal. O animal,
exausto, caíra de lado, como um peso inerte. O açoite inexorável
ainda o levantou uma vez, e no solo, como numa verônica, ficou
estampada a imagem do seu corpo, impressa em sangue. Prosseguia sem
interrupção, fogoso, lúgubre, o canto que feria asperamente o ar,
e era o eco da melodia satânica da morte. O cavalo deu mais alguns
passos, cambaleando como um alucinado, e afinal se prostrou sobre a
terra. Arquejante resfolegando num espaçado estertor, morria
vagarosamente. Nas suas pupilas de moribundo se fotografaram num
derradeiro clarão as fisionomias dos algozes. E esta imagem medonha,
que se lhe guardara no interior dos olhos, era a infinita tortura que
o acompanharia além da própria morte, presidindo à dolorosa
decomposição da sua carne de mártir.
Cessaram
as vozes. Os homens se agruparam em torno do cadáver, rezando como
fantasmas loucos. Poças e fios vermelhos manchavam o sulco. A camada
de argila, lisa, escorregadia como uma couraça, tornava o seio da
terra impenetrável ao sangue, que sorvido pelo sol se evaporava e
dissolvia no ar. Era a rejeição do sacrifício, o repúdio da
imolação, rompendo a cruenta tradição do passado. A nova Terra
juntava a sua contribuição aos límpidos ideais dos novos homens...
(Do
livro “Canaã”,1902)
* José Pereira da Graça Aranha foi escritor e diplomata, imortal da Academia Brasileira de Letras, considerado um autor pré-modernista no Brasil, sendo um dos organizadores da Semana de Arte Moderna de 1922.
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