Lula
e as duas ditaduras
*
Por Urariano Mota
A
biógrafa Denise Paraná no livro "Lula, o filho do Brasil"
registra que o futuro presidente, no ano da sua prisão em 1980, era
o líder de uma greve metalúrgica que deixara o país com a
respiração suspensa. Segundo Denise Paraná, Dona Marisa relatou
momentos de tensão: "Ela, em estado de pavor, temia que a
polícia invadisse sua casa e promovesse um massacre ali dentro, na
frente das crianças". O pavor era da natureza do tempo. Isso
podia acontecer. A ditadura inaugurada em primeiro de abril de 1964
acabara de completar 16 anos, agonizava, mas não morrera. Prisões
arbitrárias, torturas e morte continuavam a existir.
Simultaneamente, outras 12 pessoas ligadas ao movimento sindical
haviam sido detidas, incluindo os advogados Dalmo Dallari e José
Carlos Dias. Não se sabia ao certo quando eles poderiam ser
libertados ou por quais crimes estavam sendo encarcerados.
Em 1980, a prisão de Lula ocorrera sem mandado judicial. Em 2018, a prisão de Lula se fez sob a sentença de que ele se corrompera com o recebimento de um Tríplex, mesmo sem prova de que fosse o dono. A sentença condenatória foi tão miserável de provas, que os parágrafos podem ser copiados de qualquer lugar do documento, e o resultado será o mesmo. As desrazões se repetem ou apenas mudam os nomes dos delatores. Mas sempre a nota do samba é uma só: o delator declarou, declarou, declarou, ao infinito. Há "provas" que se referem a e-mails, onde Zeca Pagodinho significa Lula, Brahma é Lula, Chefe é Lula, Madame é Marisa. Todo arrazoado desarrazoado é um labirinto de idas e vindas, recuos, voltas, de fixação em busca de um só ponto: a condenação do ex-presidente Lula.
Lembro
do diálogo, da última vez em que Lula depôs frente ao inquisidor
da direita brasileira:
"Moro
- Senhor ex-presidente, pode esclarecer se havia a intenção desde o
início de adquirir um triplex no prédio invés de uma unidade
simples?
Lula:
Não havia no início e não havia no fim. Eu quero falar, porque
tenho direito de falar que não requisitei, não recebi e nem paguei
um apartamento que dizem que é meu.
Moro:
Nunca houve a intenção de adquirir esse tríplex?
Lula:
Nunca houve a intenção de adquirir o tríplex.
Moro:
Aqui, tem uma proposta de adesão, sujeita à aprovação,
relativamente ao mesmo imóvel. Isso foi assinado pela senhora Marisa
Leticia, vou mostrar aqui para o senhor.
Lula:
De quando que é essa data aqui?
Moro:
01/04/2005. Consta nesse documento, não sei se o senhor chegou a
verificar, uma rasura. O número 174 correspondente ao tríplex nesse
mesmo edifício foi rasurado e, em cima dele, foi colocado o número
141. Este documento em que a perícia da PF constatou ter sido feita
uma rasura, o senhor sabe quem o rasurou?
Lula:
A Polícia Federal não descobriu quem foi? Não?! Então, quando
descobrir, o senhor me fala, eu também quero saber.
Moro:
Aqui, consta um termo de adesão de duplex de três dormitórios
nesse edifício em Guarujá, unidade 174 A, que depois, com a
transferência do empreendimento a OAS, acabou se transformando
triplex 164 A. Eu posso lhe mostrar o documento?
Lula:
Tá assinado por quem?
Moro:
.. A assinatura tá em branco...
Lula:
Então o senhor pode guardar por gentileza!"
E
com tais provas, enfim, o juiz deu a sentença :
'Condeno
Luiz Inácio Lula da Silva"
Onde
está o novo, a novidade entre as duas prisões, em 1980 e 2018?
Antes, Lula era o líder da maior greve operária até então. Hoje,
é o perigoso favorito de se tornar presidente do Brasil. Tanto em
uma prisão quanto em outra, o motivo real não se escreveu conforme
escrevo aqui. Na primeira, ele perturbava a boa ordem democrática.
Na segunda, ele perturba o sossego do novo golpe no Brasil. Não
parece a todos que a ditadura no Brasil entrou a vigorar com novo
nome?
Há
diferenças, é claro, entre aquele tempo da primeira prisão de Lula
e este que nos é dado suportar. Mas são diferenças que apontam
mais para as semelhanças, como uma reprodução da pessoa em
caricatura. Isso quer dizer, de modo mais claro. Transformaram as
conquistas democráticas em uma aplicação caricata.
De
modo pontual, comparemos a Justiça na ditadura com a de hoje. Antes,
não havia habeas corpus. Hoje, continua a não haver, para os
escolhidos como perigosos pela justiça brasileira. Para os melhores
ladrões, os mais ricos, estamos numa democracia: existe o seguro
remédio do habeas corpus. Para Lula, não, estamos na ditadura dos
anos 70. O tempo não passa igual para todos. A democracia não é o
sol que inunda igual o povo e os burgueses
Para
a justiça que temos, bem cabe o conceito de Tolstói no imortal
romance Ressurreição:
"-
Qual é o sentido da justiça?
-
A manutenção dos interesses de uma classe. O tribunal tem o único
propósito de conservar a sociedade na situação atual e para isso
persegue e executa tanto aqueles que se encontram acima do nível
comum e querem elevá-lo, os chamados criminosos políticos, como
também aqueles que se encontram abaixo, os chamados tipos
criminosos...."
Os
mais ilustres juristas europeus e latino-americanos já se
manifestaram contra a flagrante injustiça e perseguição ao líder
mundial. Em carta enviada de Paris ao Supremo Tribunal Federal, eles
denunciaram as ilegalidades no processo contra o ex-presidente Lula e
pediram que lei brasileira seja respeitada "com rigor e
independência". Liderados pelo advogado francês William
Bourdon, disseram estar igualmente preocupados com as "graves
afrontas aos direitos da defesa" de Lula, como submeter seus
advogados a escuta telefônica; essas "irregularidades e
anomalias" não seriam alheias "a uma pressão midiática
muito forte, alimentada pelo jogo de ambições pessoais".
Vocês
lembram bem das interceptação telefônica sobre advogados,
familiares do ex-presidente e até da presidenta Dilma. O que é
isso? Na ditadura de 64, a interceptação era a lei. Na ditadura de
hoje, a lei é a interceptação telefônica. Isso quer dizer, a
polícia espiona, intercepta, invade a privacidade sob "autorização
judicial", como repetem os âncoras e comentaristas da mídia do
capital. Não veem a caricatura que se faz de direitos soberanos da
Constituição de 1988?
Ela
manda em seu Artigo 5º, inciso XII – "é inviolável o sigilo
da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e
das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem
judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins
de investigação criminal ou instrução processual penal". Mas
como deveria ocorrer a chamada ordem judicial? A Lei nº 9296, de 24
de julho de 1996, regulamentou esse princípio fundamental. Um trecho
da lei determina: "Em qualquer hipótese deve ser descrita com
clareza a situação objeto da investigação, inclusive com a
indicação e qualificação dos investigados, salvo impossibilidade
manifesta, devidamente justificada" . Ora, como então atingiram
a presidenta em exercício e advogados de Lula em interceptações
telefônicas? Simples, um juizinho federal deu a ordem, e se passou
por cima da lei na maior ligeireza. A Constituição Federal, que
nasceu pela redemocratização do Brasil, hoje não mais se cumpre.
Ela se interpreta, sempre em desfavor de quem a direita julgar como
digno de perseguição, a saber, sempre em desfavor da soberania
popular.
E
tais juízes com suas arbitrárias sentenças encontram respaldo,
garantia nos comunicadores que não mais investigam, estudam ou
pesquisam para a notícia. O seu trabalho se tornou até mais fácil,
digamos. Apenas repetem como bons papagaios a ordem de cima, a dos
editores, a do judiciário ou da polícia. Os repórteres perderam o
pejo de propagar como boas notícias a perda de direitos conquistados
há décadas. Assim, na reforma trabalhista noticiavam contentes,
alegres e felizes, como se fossem escravos a saudar a escravidão, a
negação de leis trabalhistas. Na verdade, o noticiário se tornou
um circo de horrores. Ninguém mais, de são consciência e estômago,
suporta a carga de violência de mortes, de estupros e de massacres,
de assassinatos por falta de recursos nos hospitais, que emolduram a
maior violência política, cujo máximo é ter o maior líder da
história na prisão. E os apresentadores repetem, sem a mais leve
insinuação de desconfiança ou presunção de inocência, com a
cara feliz, a mais recente negação de direitos constitucionais ao
ex- presidente Lula.
Então
a mídia comete a censura, proibida pela Constituição de 1988: "é
livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; é
assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da
indenização por dano material, moral ou à imagem". Para eles,
do alto da sua glória do mundo, esses princípios são bobagens
federais, que contornam, quando não dão vez à diversidade
política, cultural e artística da vida que corre no Brasil fora da
caricatura. Minto, plantam falsos debates, sem o contraditório de
intelectuais tribunos, ou como fizeram com a futura vice-presidenta
Manuela, quando ela foi cercada e abafada numa arena viva. Na mais
recente quinta-feira, Lula expressou em carta para a Band, que o
excluíra do debate de candidatos à presidência:
"O
nome disso é censura. Sou candidato porque não cometi nenhum crime
e tenho compromisso com este povo que, em 2010, ao final de meu
mandato, concedeu-me o maior índice de aprovação de um presidente
na história deste país, com 87% de avaliação positiva".
O
pior é que a nova ditadura – com aparências e simulacros de
democracia – ameaça voltar à velha ditadura, pela voz de quadros
generais em declarações do atrasado pensamento do tempo da guerra
fria. Penso, enfim, que se não houver uma resposta enérgica do povo
organizado e dos artistas e intelectuais brasileiros, logo, logo
teremos de volta o velho dragão da maldade, a velha ditadura pura e
simples. Sem disfarces de aparência.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa,
membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance
“Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici,
“Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus”, “Dicionário
amoroso de Recife” e “A mais longa juventude”. Tem inédito “O
Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros
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