Como amansar a
escola? O barro, o jenipapo,
o giz.
* Por José Ribamar
Bessa Freire
Duas
mestras Xakriabá que trabalham com barro – dona Libertina Ferro e
dona Lurdes Evaristo – foram convidadas pela Faculdade de
Arquitetura da UFMG para serem professoras da disciplinaArquitetura
e Cosmociência.
Elas moram na terra indígena de São João das Missões, norte de
Minas, e viajaram pela primeira vez a Belo Horizonte. Encerraram
o Programa
Saberes Tradicionaiscom
aulas práticas, construindo no campus Pampulha da Universidade
Federal uma casa tradicional de pau-a-pique com pinturas artísticas
de pigmentos de toá e telhas de barro. Foi quando um aluno, com
calculadora à mão, perguntou:
-
Como é que se mede o espaçamento da madeira? Qual a quantidade de
barro?
-
São três mãos cheias de barro para cada quadrado – foi a
resposta de uma das mestras, que encheu a mão e mostrou na hora como
se fazia.
Os
futuros arquitetos indagaram quanto tempo durava uma casa xakriabá e
foram informados que entre quatro a seis anos, dependendo da fase da
lua no momento de retirar o barro. Um deles, então, ofereceu uma
técnica capaz de manter em pé durante a vida toda casas tão
bonitas como aquela.
-
Não, meu filho. Obrigado, mas isso é perigoso. Se aceito sua
oferta, como é que vou ensinar meus filhos e netos a construir? Não
é a casa que tem que durar, mas o conhecimento. A casa usada se
desfaz justamente para que eles observem como se faz uma nova. A casa
cai, mas se fica a forma de aprender, a gente levanta outras e é
assim que o conhecimento permanece, circula e se renova.
A
construção da casa, em 2015, foi narrada por Célia Xakriabá Mīndã
Nynthê nesta terça-feira (31), na Universidade de Brasília (UnB)
durante a defesa de sua dissertação de mestrado, que discute a
reativação da memória e a lógica territorializada, com reflexões
epistemológicas sobre os caminhos da educação numa temporalidade
marcada pelo barro, o jenipapo e o giz.
Memória
nativa
Célia
Nunes Correa, 29 anos, pós-graduada no Mestrado Profissional em
Sustentabilidade da Universidade de Brasília (UnB), pesquisou as
experiências de educação Xakriabá, um povo que vive em 35
aldeias, com população estimada em torno de 11 mil pessoas, cuja
língua original pertence ao tronco Macro Gê. Para isso, ela
trabalhou o conceito de memória
nativa, que
é antiga, ancestral e o de memória
ativa, reativada
a partir de matrizes do passado, que estão sendo permanentemente
atualizadas.
Na
sua infância, quando não existia escola na aldeia, Celinha foi
iniciada nas práticas culturais por seus pais: dona Maria e o líder
indígena Hilário e pelo avô José de Souza Freire, mestre na
linguagem cantada e na entoação de versos – as loas. Esse foi “o
tempo do barro”:
- Foram
conhecimentos adquiridos e experiências vividas transmitidas pelos
mais velhos aos mais novos, importantes na preservação e na
construção da identidade. As mãos que moldam um pote ou uma panela
de barro trazem um pedaço do território e toda a sua sabedoria. A
gente aprendeu a plantar, coletar, fazer artesanato, principalmente
de barro – escreve Célia.
Na
sua trajetória de vida, que é também a dos Xakriabá de sua
geração, a infância é marcada pelo “barro”, mas a juventude é
o “tempo do jenipapo” (grafado com “g” por razões que ela
explica), que fornece a tinta usada na pintura, cujos traços são
portadores de conhecimento.
-
Foi na minha juventude que aprendi com os mais velhos a arte das
pinturas corporais. Tentaram tirar de nós essa prática, seja pela
proibição, seja pelo constrangimento imposto pelos não-índios.
Nesse período de perseguição, os grafismos pintados eram guardados
nos objetos de madeira, nas cerâmicas, na memória das pessoas e até
nos paredões das cavernas. Eles nunca foram esquecidos. Depois de um
tempo os objetos foram desenterrados, reativando a memória e o
ritual, segundo depoimento do líder Valdemar Xavier.
Memória
ativa
-
Consideramos que cada passo no preparo da tinta é tão importante
quanto pintar o corpo, tudo faz parte do ritual de se pintar –
escreve Celinha, que cita o pajé Vicente: “Não é só a pele que
está sendo pintada, mas o próprio espírito”. No corpo se tece e
escreve histórias, se registra saberes. As marcas e os traços tem
significados. Quem sabe ler os grafismos, enxerga muito mais que um
simples desenho.
O
povo Xakriabá mantém forte relação com as pinturas corporais,
“para além da pele, para além da estética”. Lá estão
registados os benzimentos e as plantas que curam, a observação da
natureza, as profecias do tempo, que conseguem prever chuva, sol e
outras “temperalidades” na expressão usada por dona Maria, para
quem “o tempo deve ser como tempero, cada um tem o seu diferente”.
O
“tempo do giz” é marcado pela chegada da escola, no início uma
ferramenta colonial de dominação, que usou o apagador para eliminar
a memória indígena e para suprimir os ancestrais processos de
aprendizagem. Com o quadro assim apagado, o giz só escrevia nele uma
versão única da história do Brasil. Quando os Xakriabá perceberam
o caráter selvagem, truculento e devorador da escola, decidiram
“amansá-la” para utilizá-la em seu favor, com uma perspectiva
epistemológica singular, um calendário sociocultural próprio e até
o nome com que a escola era batizada.
-
Antes, as escolas tinham nomes de gente morta, de políticos, foi uma
conquista conseguir nomeá-la com uma palavra na língua Xakriabá.
Kanatyo Pataxó diz que as nossas escolas são lugares de
conhecimento vivo, por isso não devem ter nome de pessoas mortas,
porque a escola tem que inspirar a vida, assim o nosso conhecimento
também permanece vivo. Foi assim que começamos a amansar a escola.
Calendário
sociocultural
A
pesquisadora discute esse “amansamento” a partir das experiências
na Escola
Estadual Indígena Xukurank, que
significa “Boa
Esperança”,
localizada na aldeia Barreiro Preto, onde ela foi aluna e depois
professora de cultura. Os feriados letivos são outros. Em todas as
escolas das aldeias, duas datas são celebradas: 12 de fevereiro,
quando foi assassinado, em 1987, o cacique Rosalino na luta pela
terra e o 25 de abril, morte do Cacique Rodrigão ocorrida em 2005.
Durante as semanas dos dois feriados, os professores trabalham os
conteúdos relacionados a esses acontecimentos.
-
A Escola
Xukurank –
escreve Célia – está voltada para a realidade do nosso povo,
valoriza a cultura, o modo de vida, a história de luta, o manejo do
território e as pesquisas com os mais velhos, além de trabalhar as
disciplinas curriculares. Seu caráter de educação subversiva
e transgressora lhe
confere um lugar potente de articulação entre saberes. Temos aulas
de cultura, de língua e de direitos indígenas, mas também de
matérias convencionais com outras metodologias. Em Matemática
trabalhamos a geometria das pinturas corporais, em Geografia o
mapeamento do território e assim por diante.
Os
conhecimentos dos velhos registrados na dissertação de Celinha
foram obtidos na Oficina “Reativadores
de memória: memória nativa e memória ativa”, que
ela organizou como forma coletiva mais eficaz do que uma entrevista
individual para coletar os saberes tradicionais num espaço
interativo, de modo que quando uma pessoa estava contando uma
história, a memória de um reativava a memória do outro. Esse foi
um diálogo de memórias nativas e ativas. Assim, ela conclui:
-
Quanto mais conheço o novo, mais sinto a necessidade de retomar as
minhas origens. A experiência do mestrado reforçou mais uma vez a
compreensão de como eu mesma me constituo a partir dessas origens:
do barro, do genipapo e do giz.
P.S.
1 Célia Nunes Correa Xakriabá. O
Barro, o Genipapo e o Giz no fazer epistemológico de autoria
Xakriabá: reativação da memória por uma educação
territorializada.
Brasília – DF, 2018, 213 p. Dissertação do Mestrado Profissional
em Sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais. Centro de
Desenvolvimento Sustentável. UnB. Banca: Cristiane Portela
(orientadora), Juliana Merçon (Universidad de Veracruz – México),
Mônica Celeida R. Nogueira (UnB), professora Joana Xakriabá
(convidada especial como examinadora indígena) e José R. Bessa
Freire (Uerj-Unirio).
P.S.
2 - Depois do curso dado na UFMG, professores e alunos de arquitetura
se deslocaram para a aldeia da Caatinguinha e ali conviveram durante
duas semanas com os Xakriabá, com quem construíram um centro
cultural.
Obs.
Um amigo sugeriu para que hoje, nesse espaço semanal, fossem
comentadas as entrevistas de Jair Bolsonaro no Roda
Viva e
na Globo
News.
Peço desculpas. É que a dissertação da Celinha, que fala em
"amansar" a escola, é 500 mil vezes mais importante para o
Brasil do que as ignorantes fanfarronices de um canastrão que quer
barbarizar a escola.
* Jornalista e historiador.
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