Senhora, posso ajudá-la?
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Por Laís de Castro
Posso ajudá-la, senhora?
Posso ajudá-lo, senhor? Posso ajudá-la? Posso ajudá-lo? Só
faltava ensinarem a menina a dizer posso ajudá-lo, veado, posso
ajudá-la freirinha, posso ajudá-lo, palhaço, imbecil, coió. A
pobre da moça arrumou o pior emprego do mundo, juro por tudo quanto
é mais sagrado, cada um que sacralize o que preferir, eu não queria
esse emprego. Ficar seis, oito horas ali, de pé, emplumada e
empinadinha naquele uniforme de colegial retardada, dentro daquele
banco horrendo, com um elevador de vidro igualzinho àqueles que
descem caixão para cremar, é feio mesmo, aquele banco, não tem um
verde, nem um vaso de flores, nem isso, é árido, frio, parece uma
enfermaria, uma UTI.
Bom, tem quem goste dessas
porcarias de mármore, tem quem ache chique. Tem gente que gosta de
ir a restaurantes assim, a festas de casamento em salões que as
pessoas alugam, assim, horrendas, que parecem túmulos de mármore
mesmo. Burrinha a menina do posso ajudá-la, senhora, posso ajudá-lo,
senhor, nem para passar a senhora de mais de 80 anos na frente dos
outros a babaca, eu que tive que tomar essa providência, também
precisa ser burra pra aceitar um emprego destes.
Ela parece um robô, posso
ajudá-la é o caramba, vai pra sua casa, borda pra fora que você
vai se ajudar, isso sim, usar mais o cérebro e vai ganhar a mesma
insignificância que você ganha aqui, mas gasta condução, lanche,
roupa, cabeleireiro, esmalte, tudo isso que na sua casa ia
economizar. Pensa bem, menina, não seria mais criativo bordar toalhas em casa? Ou
costurar, desenhar, cortar, chulear, pregar botão ou qualquer joça
assim?
Quando digo joça não quero
ofender você, acho que qualquer coisa que a gente faz vale a pena, o
Fernando Pessoa disse que só vale a pena se a alma não é pequena,
mas não creio em droga de alma nenhuma, só acredito no que vejo e o
que tenho visto ultimamente está danado.
Preferia mil vezes cortar
cana. Pelo menos, pra ir pro canavial a gente sobe no caminhão, bem
de manhãzinha, o vento batendo no rosto, o sol nascendo e o céu
límpido, claro, aquela luz de fotografia de cinema. Tudo bem que a
gente malha o dia inteiro, um dois, um dois, corta a cana, corta o
dedo, corta o braço que a folha da cana é uma lâmina, corta o
coração e ganha por tarefa. Ganha pouco, mas, vou falar de novo,
não gasta com condução, com manicure, cabeleireiro, o que ganha é
seu, o que ganha come.
Bom. Bom, não, ruim, que o
sol bate na gente queimando tudo, isso bate, mas a gente pode pôr um
chapéu e jogar uma água na cabeça, aquela água que vem da mina,
geladinha e eles trazem pra gente beber e a gente joga na cabeça e
refresca os miolos. No inverno, o sol bate e esquenta a gente e a
sensação daquele calorzinho na pele faz a gente se sentir viva.
Vai ser louca assim lá longe,
alguém há de gritar, trouxa, idealizando a profissão de cortador
de cana, é imbecil ou o quê? Nada disso, é uma escravidão, mesmo,
mas alguém pode me responder se ficar o dia todinho de pé num
mausoléu de mármore, vestidinha e penteadinha como boneca Barbie,
repetindo posso ajudá-la senhora, posso ajudá-lo senhor é melhor.
Porque uma recepcionista de banco ganha 400, 450 contos, com os
descontos recebe 330, 380 e não tem direito nem ao vento no rosto e
nem à vista do pôr-do-sol quando volta para casa no caminhão, se
for inverno tem aquele poente vermelho, alaranjado, às vezes até
cor-de-rosa tem.
Em Sampa, do banco para casa,
tem direito a duas glamourosas horas de pé no ônibus e no metrô ou
a balançar até vomitar no lotação que anda feito louco quando
está lotado e tem direito a ser roubada e a ser encoxada por uns dez
tarados por semana. Tá bom, eu sou biruta, o banco dá assistência
médica e a cana, não. Mas é claro, respirando o ar poluído da
capital e de pé o dia inteiro, ela vai ter um montão de doenças
pulmonares e varizes, coitada, ali de pé. O usineiro é um
desgraçado de não pagar um dinheirinho para um médico ir até lá
uma vez por mês, fazer uma revisão no pessoal, ah, sim, se é, é
sim. Mas, embora eu tenha um problema permanente com esses ambiciosos
que vão todos morrer com a boca cheia de formiga, hoje não vai ter
discurso social.
Olha, cortando cana sua mão
pode ficar grossa, a pele do rosto vai queimar e rachar e bordando em
casa você não vai arrumar marido a não ser que case com o vizinho
de cima, tenho uma prima que minha tia prendia de tal maneira que ela
deu no elevador e teve que casar com o vizinho de cima, feio e
narigudo. Deu no que deu.
E indo toda produzida para o
banco você tem a oportunidade de fisgar um cliente rico no seu
anzolzinho da periferia, ou casar com um gerente, será que ele não
vai querer ser só seu amante, que chorumela, posso ajudá-la
senhora, posso ajudá-lo senhor, também você pode conseguir estudar
à noite e depois de uns 8 anos de sacrifício porque o trabalho
dignifica o homem, ser promovida a ficar ali atrás do balcão,
dizendo pois não senhora e pois não senhor, pois não senhora e
pois não senhor, pelo menos a frase já mudou e você já ganha 700
por mês.
Seja lá a meleca que for,
esse banco de pé direito alto é o mais feio do país, é mais
sepulcral, brega e requietório até do que a agência do banco de
Sarapuí, que tem umas divisórias de Duratex sed lex no cabelo só
Gumex, uns balcões velhos de fórmica e isso é depois que foi
reformada. Mesmo assim é mais bonita do que esse horror de mármore,
plantado no nobre endereço da Av. Paulista, lotado de guardas por
todos os lados, segurança pública, segurança privada, segurança
mista, segurança eletrônica, segurança 24 horas, segurança
monitorada, segurança trouxa.
As últimas palavras da menina
foram posso ajudá-lo, senhor, e o bandidão falou que seria uma boa
ajuda se ela calasse a boca e deitasse no chão e ela, desatinada,
começou a gritar sem mesmo ouvir que gritava, dizem que é assim que
acontece, a gente assusta e grita e nem sabe que está esganiçando e
o homem furou ela ali mesmo, um rombo do tamanho de uma bola de
pingue-pongue no peito, o balaço à queima-roupa, à queima-pele, à
queima-coração, pulmão, queima-estômago, fígado, queima tudo.
O ambiente era bem propício.
Eu não disse, desde o começo, que a merda daquele banco parecia um
túmulo?
* Jornalista desde os 21
anos, quando estreou na tradicional revista Realidade, trabalhou 18
anos na editora Abril, vários anos na Carta Editorial e outros mais
na Azul. Hoje é diretora de redação da revista Dieta Já, da
Editora Símbolo. Ganhou 3 prêmios Abril, um concurso de contos
infantis no Estado do Paraná e agora lançou seu primeiro livros de
histórias para adultos: “Um Velho Almirante e outros contos”,
pelo selo ARX (Siciliano).
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