quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Carta nº 4 - De Manuelita para Katty - Urda Alice Klueger


Carta nº 4 – De Manuelita para Katty


* Por Urda Alice Klueger


Oi, Katty, penso que você vai se lembrar de mim. Sou aquela gatinha caçadora e gritadora que a Urda pegou para criar nos tempos de Blumenau, aquela do livro “Nossa família aumentou”. Lembrou, né? Então sabe que um dia a Urda me guardou dentro de uma caixa para gatos, me colocou no carro, e com o Atahualpa e uma mala veio embora para este lugar chamado Enseada de Brito. Fomos morar numa velha casa onde não havia quase nada dentro, e ficamos lá acampando alguns dias, para que eu me acostumasse ao novo ambiente. E então chegou a mudança e foi uma coisa trágica: jamais poderia imaginar tal confusa invasão na vida de uma gatinha delicada como eu! Por sorte, descobri um lugar por onde passar que me levava ao forro da casa, e depois, diversas outras passagens, lá em cima, que permitiam que eu circulasse na mata dos fundos e nos quintais de alguns vizinhos, e lá passei um ano e oito meses. Só descia para a casa quando me sentia muito segura – na verdade, só gostava da Dona Julita, a senhoria da casa, que sempre aparecia para uma visitinha, e de uma outra moça muito querida, que me chamava de Manu, e que eu permitia até que me pegasse no colo.

A Urda punha minha comidinha numa prateleira bem alta e às vezes até chorava porque eu não queria mais nada com ela, mas para que é que ela me trouxe para este novo lugar? E ainda por cima, um mês depois, trouxe para casa um cachorrinho faminto, o Zorrilho – tá, era fácil para mim me entender com mais um cachorro – afinal, antes de vir para cá convivera com o Atahualpa e o Cusco e nunca me importei quando eles quase se esgoelavam de tanto latir para mim. Não bastando o cachorrinho, sabe o que ela fez no outro mês? Arranjou mais uma gatinha, uma filhotinha de nada que se chamou Domitila, e aquilo foi a gota d´água para azedar a minha vida. Mais tarde veio a Tereza Batista, uma cachorrona que sempre quis me cheirar e que eu nunca deixei – daí Tereza Batista ficou foi amiga de Domitila e até hoje pensa que eu sou um bicho muito estranho, já que nunca me cheirou, e quando me vê ou me pressente deixa sair do peito um ronco que parece o de um vulcão.

Bem triste foi a minha vida naquela casa velha com esse bicharedo, sem contar os insetos e outros bichos que viviam no forro da casa e na mata circundante e no calorão do verão e no frio do inverno naquele espaço inacessível aos outros. É bem verdade que a Domitila e outros gatos da vizinhança andaram por lá, mas saiu todo o mundo apanhando.

Daí, faz pouquinho tempo, a Urda comprou uma outra casa e fez tudo o que pode para me amansar de novo. Ganhei uma casa de gato bem macia, que é uma toca protegida e escura, uma porção de agrados, e tive que ficar presa com Domitila uma semana inteira no quarto de visitas com um cheirinho ligado à tomada, que era para que a gente não brigasse: acho que aquilo era algo como uma maconha para gato. E depois nos mudamos para a casa nova, e aqui não tem nenhuma abertura para eu passar para o forro. A Urda cuidou dos detalhes, separou um pomar para gatos e outro para cachorros, mandou fazer uma escadinha de gato para que a gente pudesse entrar pela janela do quarto dela, fez um ambiente com a minha toca e comidinhas no closed, e havia que se acostumar. Mesmo assim relutei um bocado, voltei diversas vezes para a casa velha, passando por dentro da mata por caminhos que só eu sei, muito diferente de Domitila, que passa pela praia e surra os cachorros que aparecem. Sou uma gata muito fina para essas baixarias.

Na outra casa agora não tem mais nada, e como a Urda sempre ia me buscar de volta, acabei me acostumando com a nova vida. É bem legal dormir, de novo, na cama que já foi minha, principalmente neste frio que está fazendo, e me encostar na Urda para me esquentar. É verdade que do outro lado a Domitila também se encosta, mas com o maior respeito, senão eu faço “Fiiizzz” para ela e ela se manda. Atahualpa também não gosta muito de Domitila – ele sempre foi o meu cachorro, faltava agora que mudasse de lado. Dormimos os quatro juntos, já que os outros cachorros dormem no escritório, e começou uma nova fase na minha vida nesta casa cheia de sol e vento, com suas tantas janelas e com um pomar de gatos que na verdade é meu. Domitila é uma cachorrista; passa o dia com os cachorros e sei que de manhã dorme sobre a mesa da sala de jantar, porque bate sol bem ali, o que faz com que a Urda corra a trocar a toalha da mesa a cada vez que chega uma visita.

Pois é, Katty, só queria dar umas notícias e dizer que a vida voltou a ficar boa. Preocupo-me um pouco porque Atahualpa está ficando bastante velho, mas ele ainda corre, galopa e atravessa os ribeirões que saem na praia até nadando, o que me faz pensar que teremos ainda muito tempo para sermos felizes. Então deixo um “mio” bem delicado para você e fico aguardando sua visita.
Grande carinho,


Manuelita Saens Klueger
Gata
Sertão da Enseada de Brito, 02 de agosto de 2018.


* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de vinte e cinco livros (o 25º lançado em maio de 2018), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições), “No tempo das tangerinas” (12 edições) e “No tempo da Magia”.



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