sexta-feira, 3 de agosto de 2018

A noite de Olinda na ditadura - Urariano Mota


A noite de Olinda na ditadura


* Por Urariano Mota

Cícero João de Lima, de nome artístico Peneira, é o dono do melhor bar de Olinda nos últimos tempos. Nos Quatro Cantos da cidade, o seu bar possui desenhos de J. Borges nas paredes e pintores de talento que frequentam suas mesas e quadros à vista de todos. Ele próprio, o Peneira, é bonachão, mulato à maneira de Caymmi, quase Zen.

Mas com um senso de visão do seu público que nem se percebe, e que muitas vezes disfarça fingindo cochilar atrás do balcão, bem guardado em sua pessoa de homem pacato e largo. Mas nada, Peneira está em seu posto a observar tudo. Sem maledicência ele vê toda a gente, músicos, poetas, jornalistas, pintores, comunistas, boêmios, com um coração que tem abrigado mais de um artista de Olinda caído em desgraça. Lembro do movimento que ele comandou em prol de Erasto Vasconcelos, quando o irmão de Naná esteve internado sem recursos.

É um bar solar, de domingo, mesmo se for outro dia e à noite. O bar de Peneira entra no meu romance “A mais longa duração da juventude”. Foi lá que um personagem fundamental do livro – Luiz do Carmo, cujo modelo foi o escritor Marco Albertim - teve uma conversa iluminante sobre literatura:

“Ali naquela mesa do Peneira, sei, e não posso dizer na hora em que sentido, conversei com o meu amigo Luís do Carmo antes do seu último dia. À porta do Bar do Peneira passam jovens sorrindo, olham, sorriem e nos acenam. Respondemos num impulso, mas como no filme de Chaplin o aceno era para outra pessoa no bar. E sorrimos do engano. Então, na quinta dose, chegamos não sei como ao que é crucial para Luiz do Carmo, ao que é um valor mais alto que a puberdade tardia de Goethe. E lhe digo, não sei por qual movimento do álcool ou do gelo no álcool:
- Os seus textos são elogiados, Luiz.

Então ele me olha surpreso, curioso, e me faz uma intimação da verdade:
- Por quem?
- Pelas pessoas, pelos intelectuais em quem temos confiança.
- Mas quem? – Luiz do Carmo pergunta com os olhos ainda mais arregalados. E lhe respondo:
- Por Zacarelli, por exemplo. Você sabe, Zacarelli é um grau de competência intelectual entre nós.
- Eu sei, é um amigo – ele me responde, entre a descrença e o crédito.
- E José Carlos Ruy, e José Reinaldo, que são intelectuais de valor e comunistas.
- Eu sei. Mas são generosos, são camaradas.

Entendo o que Luiz do Carmo deseja. E o compreendo porque somos da mesma natureza. Ele, como todo escritor, possui uma dúvida absoluta sobre o próprio talento. Não importa em que ponto de reconhecimento universal se encontre, para o escritor sempre haverá a dúvida numa hora da madrugada: ‘E se tudo for mentira? E se toda essa louvação for um engano? Passado este momento, este presente, não ficarei esquecido, como tantos medíocres?

Eu não gosto da fama do meu nome, dizia-se um personagem de Tchekhov. Eu entendo a angústia de Luiz do Carmo, mas não posso deixar de me comover diante da sua ansiedade”.

Voltando ao bar na mais recente quinta-feira, entrevistei o Peneira sobre o bar símbolo da ditadura em Olinda, o Bar Atlântico, mais conhecido pelo nome de Maconhão. Vocês entenderão por quê. Peneira foi garçom do Maconhão, e já ali viu o que os clientes não sabiam, porque ele era discreto no observar. Como ele recorda aqui:
- Nasci em 26/10/1955. O primeiro bar em que trabalhei foi o Maconhão. O bar símbolo, O bar da moda. Comecei já como gerente. O ônibus passava ali na frente do Maconhão em 1977. Ali se reuniam todas as tribos de Olinda. Quando eu cheguei lá já era Maconhão. O dono era Clodomiro. O bar amanhecia o dia. Lá, estava todo o mundo, hippie, branco, preto, gay, artistas, esquerda, jovens, boêmios. Todo o mundo.

O que me lembra mais do Maconhão é que todo artista, que vinha pra Olinda, tinha que passar no Maconhão. Podia ser quem fosse. Era o bar da vez de Olinda. Eu lembro de vários artistas: Zè Ramalho, Fagner, Elba Ramalho, Elke Maravilha, a irmã de Chico Buarque, Miúcha. Elke Maravilha fechou uma noite lá. Todos artistas plásticos iam. Estavam começando as histórias deles, não é?. Martinho da Vila, todo o mundo. No Maconhão não tinha rico nem pobre, podia ser quem fosse. Não tinha isso de sapatão, gay, não. Ali naquele bar todos eram amigos meus, pra começo de conversa. Podia ser quem fosse.


A radiola de ficha, a wurlitzer, tinha disco em formato da radiola exclusivo para o Maconhão. Em nenhum outro bar de Pernambuco se encontravam as música que tínhamos lá na radiola de ficha. A gente fazia as escolhas de acordo com as sugestões de alguns clientes. O técnico da wurlitzer fazia o disco no formato da radiola duas cópias pra gente. Maria Betânia, Gal. Tudo de Chico, Gil, Caetano, Ednardo, o Pavão Misterioso. A gente tinha outras músicas também.

No dia da maior batida policial no Maconhão eu estava lá. Prenderam todo o mundo, todo o mundo. Foram presos amigos meus. O Batata, do Bacalhau do Batata, foi preso. Advogados, jornalistas. Cercaram o bar e levaram todos os clientes presos. Foi muita gente presa. Disseram que os clientes eram fumadores de maconha. Esse foi o pretexto. Foi a Polícia Federal mesmo.

Naquele bar teve muitas cenas com amigos meus, que eram homossexuais, como Pernalonga, que chegava lá e dava show, fechava. A gente discutia quase todo o dia. Eu botava ele pra fora, ele voltava no outro dia. ‘Se você quiser dar na minha cara, dê. Mas eu não deixo de vir aqui não. Eu gosto daqui”. E ficava. Pernalonga fumava todas, tomava todas, misturava todo tipo de coisa, e tomava conta da pista do bar imitando Carmen Miranda. Subia num banco e cantava e dançava. Era show”.

Para os mais jovens, e estranhos à história pernambucana, lembro que Pernalonga foi o ator mais famoso de Olinda Antônio Roberto de Lira França era o seu nome de registro civil. Arte-educador, dançarino, cantor e performático, Pernalonga foi um dos pioneiros do movimento de teatro de revista Vicencial Diversiones, um marco da resistência política e cultural nos anos 70 em Pernambuco. O Vivencial foi um teatro onde homossexuais e travestis tinham vez, contra o preconceito na ditadura em Pernambuco. Pernalonga foi morto com uma facada na perna em 2000. Perdeu muito sangue e agonizou por horas na rua até ser levado ao Hospital da Restauração. Ele era portador do vírus da Aids e como sangrava muito, os vizinhos ficaram com medo de ajudá-lo e se contaminar. O artista chegou morto ao hospital.

E Peneira volta, para concluir por enquanto a entrevista:

“- Houve mais 2 prisões de amigos lá no bar. Quando o negócio estava ficando fora do controle. Tinha muita gente lá. O pessoal do cinema, Jomard Muniz de Brito, do super 8, baixava muito lá”.

E neste momento chega a hora maior da história do Maconhão. O que a memória objetiva de Peneira fala é recuperada de um ponto de vista literário pelo escritor Marco Albertim no romance “Conspiração no Guadalupe”. Marco Albertim deu vida íntima às noites da ditadura no Bar Maconhão. E numa reflexão daqueles anos da noite da cidade de Olinda, no livro os casais se formam e se desfazem. Eles são amálgama de militantes socialistas e notívagos boêmios. O que vale dizer, políticos contra a ditadura, mas nada ortodoxos, porque são feitos do barro da experiência. Como aqui:

“Os quatro cruzaram-se a dois metros um casal de outro. Maújo, àquela altura, julgava Gertrude e Caetano um casal; por sua comodidade com Chica, pela esperança de que a ex-parelha não ficasse deserdada de todo. Seria capaz de sentar na mesma mesa com os quatro juntos, cada par apostando na felicidade do outro; com ou sem o efeito de daiquiris...”

No romance de Marco Albertim há o reconhecimento e a legitimação criadora dos bares da noite de Olinda no tempo da repressão fascista.

“O Estrela e o Maconhão têm em comum o apodrecimento do ar. Maújo e Chica o sorviam mudos, atenuando indistintas culpas. Acudia-os a sonoridade remota da rumba. Do lado de fora, dois casais tramavam o delírio noutro retiro, em cama multicor, como os olhos chispando liamba”.

Marco Albertim escreveu como ninguém sobre o Maconhão na noite de Olinda. Pela natureza do narrado é a Olinda com os seus intelectuais, artistas, jovens, álcool e fumo também. Esse Maconhão foi o bar de histórias antológicas de quedas, fracassos e encontros. Nele, certa vez um amigo desejou ser solidário a uma professora, que embriagada se deitara ao lado de um cachorro sarnento no chão. Ele pediu que ela se levantasse daquele lugar sujo onde jazia ao lado do cachorro. E ela, rápido, com o sarcasmo no espírito e na boca amarga:
- Por quê? Está com inveja?

Aquilo era o Maconhão, mais conhecido pelo nome civil de Bar Atlântico. No romance, ele é um lugar da dissolução de personagens. O bar que foi destruído, ali, ao lado do Fortim de Olinda, ou Fortim de São Francisco, ou Fortim do Queijo, no romance sempre volta.

“À meia-noite desceram para o Maconhão, de táxi. Muita gente, dentro e fora do bar. O salão escuro, fluorescente nas prateleiras de bebidas, brilho indeciso nas luzes da radiola e estrelas pingando raios nas mesas externas. Nas mesas, sonhos anarquistas, de felicidade impossível.

O garçom trouxe as doses e fichas para a radiola. Os dois assentiram com o bulício do enredo. Um meteoro riscou o céu, a luz clareou a faixa de mar na frente do Maconhão. Barcos e canoas, alumiados.

Gertrude e Caetano deliraram por mais duas horas; dormiram com cabeça e ombros juntos, apoiando-se. A radiola a meio tom serviu de fundo musical a seus sonhos. De manhã, o garçom os acordou com toques educados nos ombros. Sobressaltados, pensaram ter sido surpreendidos pelo general de pijama”

O garçom era o Peneira. E o Maconhão, bar da noite da ditadura, está imortalizado nas páginas do romance “Conspiração no Guadalupe”. O escritor Marco Albertim nos deixou em 2015. Mas continua vivo no seu mais longo trabalho: quebrar a dura pedra da insensibilidade do Brasil.


* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus”, “Dicionário amoroso de Recife” e “A mais longa juventude”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros
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