quarta-feira, 1 de dezembro de 2010




Moradora derruba paradigmas referentes à vida em asilo

* Por Mara Narciso

Quem não conhece o Asilo São Vicente de Paulo, em Montes Claros, imagina que morar lá é estar fadado a solidão, tristeza, indiferença, e até mesmo maus-tratos. Boa parte dos que vão para a entidade sabe da má fama dos asilos em geral, antes mesmo de chegar. A senhora Terezinha de Jesus Fonseca, vítima de Acidente Vascular Cerebral “sanguineo” (sic), que ficou com o lado direito esquecido, “como se não existisse esse lado do corpo”, afirma isso. Ela nos fala que está na casa há um ano. Quando conversa com visitas desconhecidas, já espera a cobrança sobre a presença da sua família, e o motivo de estar numa entidade pública em vez de estar em sua casa. Assim, quando as pessoas perguntam sobre os parentes, resume dizendo que eles aparecem sempre, para encurtar a conversa.
Dona Terezinha nasceu em Bocaiúva e se mudou para “Burarama”, atual cidade de Capitão Enéas, com sete anos. “Subia num caixote para aprender a cozinhar”, ela diz, “mas ninguém da casa de Capitão Enéas ralhava comigo na frente dos outros e nem batia em mim”. Quando adulta, visitava os pais e os seis irmãos em Nova Aurora, no Paraná, onde os pais possuíam uma propriedade. No local tinha igreja, serraria e cultivavam café. Perdeu o contato com eles, “mas ainda sei ir lá”. Quando os pais morreram, abriu mão da sua parte na terra em favor de uma irmã, que também não se casou.
A moradora do asilo, de 78 anos completados “já na casa”, com um olhar distante, em busca de lembranças em alguma gaveta do passado, diz não ter se casado e nem tido filhos por falta de tempo. Mas houve uma época em que sua casa era muito movimentada, quase uma pensão, quando criou alguns meninos, que nas suas contas foram dez. Dois deles morreram, um deles se casou, tem filho e esposa, e insiste para que ela vá morar com ele, mas não quer, “para não incomodar o casal”. Dos outros ela não falou.
No seu livro Leite Derramado, Chico Buarque nos fala na voz da sua personagem, que “qualquer coisa que eu recorde agora, vai doer. A memória é uma vasta ferida”. No seu modo simples, de quem foi à escola por algum tempo, tendo aulas em Belo Horizonte e em Montes Claros, fazendo contas nos dedos, aprendendo as letras, mas sem nunca conseguir juntá-las e conseguir ler, dona Terezinha não gosta de falar do passado. Diz que lembrar coisas velhas dói, principalmente pensar nas crianças que criou, pois quem cria “gosta dos filhos dos outros até mais do que a própria mãe”. E ainda sobre memória, “falha um pouco, mas me recordo de quase tudo. Às vezes parece que é um sonho, fica como que caindo um pingo d’água na cabeça, um buraco na mente, mas depois eu lembro”.
Dos serviços que trabalhou, dona Terezinha gostava de lavar roupas. Atravessava a cidade de ponta a ponta com uma trouxa na cabeça. Era pesado, mas o serviço era bom. Houve época em que trabalhava no Cemitério Bonfim na parte da manhã, – isso por 16 anos –, e com a lavação de roupas na parte da tarde. O cemitério, segundo ela, é um lugar comum, sem nada de especial, mesmo quando via pessoas passando mal, desmaiando e sem querer ir para casa, grudadas nos túmulos, “eu não me impressionava. Não existe alma penada e nem assombração. Tudo é normal, assim eu comia e bebia lá, entre os mortos, sem problema”. Em todos esses anos não viu nada diferente, que não conseguisse explicar.
“Não sei ler e nem escrever”, ela diz, “mas só acredito no que vejo”. E dona Terezinha acrescenta: “Falaram que no asilo as pessoas eram maltratadas. Quando tive o derrame, um compadre meu resolveu tudo. Mas morar aqui, ninguém decidiu pra mim. Eu escolhi e fui muito bem recebida”. E reafirma: “O asilo é bom. Eu fui acolhida, bem tratada pelos funcionários e pelo chefe”. “Divido o quarto com uma mulher, e temos um banheiro para quatro”. Mesmo fazendo fisioterapia duas vezes por semana e melhorando a cada dia, olha as pernas entristecida, e completa: “fico na cadeira-de-rodas e acho que não vou andar”.
Pode tomar dois banhos quentes por dia, e na hora, precisa de ajuda, mas consegue se lavar. Da mesma maneira de muitos dos internos, também usa fraldas, mas já se habituou. Tem comida e remédio na hora certa, o que é reconfortante. Nega sentir saudade de sua casa, ou que o canto dos passarinhos seja triste ao entardecer, pois sempre morou perto do mato, e gosta. Tem um rádio, mas quer uma televisão no quarto. As visitas leem e rezam. E lembra: “Hoje mesmo, já tivemos missa”.
Olhando para frente, como se não visse a parede, dona Terezinha fala, num misto de pesar e alívio: “não sinto tristeza. A única diferença é que aqui não é a minha casa. Faço de conta que estou numa longa viagem. A minha vida já terminou. O lugar onde eu vou morar mesmo é o cemitério, e lá o cantinho será meu para sempre”.

* Médica, jornalista e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”.

3 comentários:

  1. Melancólico mas absolutamente verdadeiro este seu relato, quase uma reportagem. Com suas tristezas e conformidades, foi bom conhecer a Dona Terezinha. Parabéns pelo texto, Mara.

    ResponderExcluir
  2. Dona Terezinha em suas sábias palavras
    aprendeu a suprimir lembranças dolorosas...
    Ótimo texto.

    ResponderExcluir
  3. Amigos, não digo que é alegre, mas o asilo é muito melhor do que o imaginário geral. A velhice abandonada é dramática sim. Obrigada pela gentileza de ler e comentar.

    ResponderExcluir