Escolho porta, chave e a que tempo
* Por Eduardo Murta
A alguém da velha guarda já soaria estranho, e mais tosco ainda cai a menino que mal chegara aos 20 anos: lá se iam duas décadas da chegada do Homem à lua e ele seguia fiel a canetas-tinteiro. Vivia num tempo a que, definitivamente, não pertencia. O binga dourado, produzindo faíscas sob a fricção na pedra, e a piteira à Marlene Dietrich o denunciavam flagrantemente.
E o vício de tratar as mulheres por senhorita, madame e donzela só reforçava a sensação de deslocamento. Talvez explicasse o porquê de, na família ou entre os conhecidos, o tratarem como a uma figura que vivesse ligeiramente fora da realidade. Até se esforçavam para evitar a palavra louco e sua coleção de sinônimos. Um tio então cunhou delicada síntese: João era barroco, e de Barroco passaram a chamá-lo.
Ele bem compreendia o simbolismo daquilo e recebia, no fundo, como elogio a suas escolhas: o chapéu em feltro, o relógio de bolso, a mania por palavras cruzadas, o cabelo em brilhantina e, sob chuva, galochas cheirando a novo. Nele, assim, não havia traço de aflição, porque se aceitava. Os pais, porém, amargavam puro pesadelo.
Tanto assombramento, que pediram e ele acatou. Estava marcada uma visita ao médico. Psiquiatra de fina estirpe, poliglota, viajado. As honrarias em diplomas mal cabendo nas paredes, foi para o relojão em pêndulo que derivou a atenção do visitante. A sonoridade num suave e o recorte da madeira fazendo com que João beirasse a hipnose do encantamento.
Logo falavam dos relojoeiros de uma Europa que já não existia mais. Tricotaram, com pai e mãe sonolentos e ansiosos na sala de espera. O especialista, enfim, os chamou. Sucinto: que relaxassem, porque era de mera melancolia de poeta que o filho padecia. Como assim, se nem ao menos contara a eles sobre a incursão na poesia? Pois este era um dos sintomas do que chamava de estado leve e transitório.
Se assim era, que assim fosse. Marcharam a casa e tocaram suas vidas. Lá se vão anos, e o dilema paterno agora é se presenteiam o filho no Natal com a coqueluche daqueles meados dos anos 1990 – um telefone celular. Combinava um zero com ele, mas deram, crendo numa guinada tardia. Três meses, ligações para ninguém, resolveram confiscar-lhe o aparelho.
E, paradoxo, um telefonema se candidatava a mudar tudo aquilo alguns dezembros mais tarde. A editora confirmando que sim, que amara os textos e que ensaiava até data para o lançamento das obras de João. Apostava fichas sobretudo em seu perfil exótico. Beirando o gótico. O contrato é que o fez estremecer: estipulava blog, filiação a uma das redes virtuais e presença no twitter. Logo ele, Santo Cristo!?!?!?!?!!
Recusou. Família e amigos boquiabertos à negativa. Abrira mão de fama, dinheiro, título vip. Penitenciou-se em breve exílio, enclausurado ao quartinho do fundo. Sequer da janela se aproximava. Feito reafinasse os sentidos num casulo. E num setembro de lá saltou determinado. Tudo iria acontecer, mas à sua maneira.
E foi. É João, o Barroco, notem, nas telas da CNN. Correndo mundo. O homem em megafone destilando poesia em pontos de ônibus, filas do futebol e aos bêbados e putas tristes e doentes no entorno da Guaicurus. Embotava-lhes a alma, em drama ou comédia. Se converteu em fenômeno. Virou febre na internet. A seu modo, como talhasse uma peça barroca, escolhendo quando e por que porta entrar. Porque a chave, por todo o tempo, estivera com ele. Com mais ninguém.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa e “Minhas condolências à senhora Vera”, lançado em dezembro de 2010, com 50 contos. Publicou, também, em parceria, o livro “Galo – uma paixão centenária”. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.
* Por Eduardo Murta
A alguém da velha guarda já soaria estranho, e mais tosco ainda cai a menino que mal chegara aos 20 anos: lá se iam duas décadas da chegada do Homem à lua e ele seguia fiel a canetas-tinteiro. Vivia num tempo a que, definitivamente, não pertencia. O binga dourado, produzindo faíscas sob a fricção na pedra, e a piteira à Marlene Dietrich o denunciavam flagrantemente.
E o vício de tratar as mulheres por senhorita, madame e donzela só reforçava a sensação de deslocamento. Talvez explicasse o porquê de, na família ou entre os conhecidos, o tratarem como a uma figura que vivesse ligeiramente fora da realidade. Até se esforçavam para evitar a palavra louco e sua coleção de sinônimos. Um tio então cunhou delicada síntese: João era barroco, e de Barroco passaram a chamá-lo.
Ele bem compreendia o simbolismo daquilo e recebia, no fundo, como elogio a suas escolhas: o chapéu em feltro, o relógio de bolso, a mania por palavras cruzadas, o cabelo em brilhantina e, sob chuva, galochas cheirando a novo. Nele, assim, não havia traço de aflição, porque se aceitava. Os pais, porém, amargavam puro pesadelo.
Tanto assombramento, que pediram e ele acatou. Estava marcada uma visita ao médico. Psiquiatra de fina estirpe, poliglota, viajado. As honrarias em diplomas mal cabendo nas paredes, foi para o relojão em pêndulo que derivou a atenção do visitante. A sonoridade num suave e o recorte da madeira fazendo com que João beirasse a hipnose do encantamento.
Logo falavam dos relojoeiros de uma Europa que já não existia mais. Tricotaram, com pai e mãe sonolentos e ansiosos na sala de espera. O especialista, enfim, os chamou. Sucinto: que relaxassem, porque era de mera melancolia de poeta que o filho padecia. Como assim, se nem ao menos contara a eles sobre a incursão na poesia? Pois este era um dos sintomas do que chamava de estado leve e transitório.
Se assim era, que assim fosse. Marcharam a casa e tocaram suas vidas. Lá se vão anos, e o dilema paterno agora é se presenteiam o filho no Natal com a coqueluche daqueles meados dos anos 1990 – um telefone celular. Combinava um zero com ele, mas deram, crendo numa guinada tardia. Três meses, ligações para ninguém, resolveram confiscar-lhe o aparelho.
E, paradoxo, um telefonema se candidatava a mudar tudo aquilo alguns dezembros mais tarde. A editora confirmando que sim, que amara os textos e que ensaiava até data para o lançamento das obras de João. Apostava fichas sobretudo em seu perfil exótico. Beirando o gótico. O contrato é que o fez estremecer: estipulava blog, filiação a uma das redes virtuais e presença no twitter. Logo ele, Santo Cristo!?!?!?!?!!
Recusou. Família e amigos boquiabertos à negativa. Abrira mão de fama, dinheiro, título vip. Penitenciou-se em breve exílio, enclausurado ao quartinho do fundo. Sequer da janela se aproximava. Feito reafinasse os sentidos num casulo. E num setembro de lá saltou determinado. Tudo iria acontecer, mas à sua maneira.
E foi. É João, o Barroco, notem, nas telas da CNN. Correndo mundo. O homem em megafone destilando poesia em pontos de ônibus, filas do futebol e aos bêbados e putas tristes e doentes no entorno da Guaicurus. Embotava-lhes a alma, em drama ou comédia. Se converteu em fenômeno. Virou febre na internet. A seu modo, como talhasse uma peça barroca, escolhendo quando e por que porta entrar. Porque a chave, por todo o tempo, estivera com ele. Com mais ninguém.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa e “Minhas condolências à senhora Vera”, lançado em dezembro de 2010, com 50 contos. Publicou, também, em parceria, o livro “Galo – uma paixão centenária”. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.
Que um dia eu tope com
ResponderExcluirum João barroco pelas
esquinas da vida.
Lindo texto Murta.
Abraços
Que belo conto, Murta. Personagem apaixonante o João! Consegui "visualizá-lo" declamando seus poemas pelas ruas. Quem me dera encontrar este Poeta em alguma esquina e compartilhar seus versos!
ResponderExcluirAbraços e Parabéns!
João é um egresso do passado, alguém que se fez e refez de coisas do antes. O personagem é uma pessoa enebriada pelo que já se foi, e por isso mesmo interessante aos olhos atuais.
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