domingo, 12 de dezembro de 2010




Entre a Grécia e Freud,
amêndoas açucaradas

* Por Anna Lee


Era 1992. Fora parar em Viena meio por acaso. Era uma época em que ainda não me convencera de que “nascemos com um programa inviável que é atender aos nossos instintos” e que o mundo jamais o permite, tal como Freud diz em O mal-estar na civilização. Não havia lido O mal-estar na civilização. Tivesse lido, soubesse eu que desde o início convivemos com a frustração, que primeiro a natureza não cede e depois a sociedade impõe novas restrições, teria evitado muitas das infecundas buscas geradoras de apenas frustrações. Frustrações geradoras de dor – a qual Freud classifica conforme a origem. A originada do corpo, a originada do desejo insatisfeito, e a originada das relações com os outros.

Sentia dor por todos os lados. De todas as origens. Achei que na Grécia, frente a frente com os deuses, presenças espectrais no Parthenon, cara a cara com o início de muitas das coisas, pudesse encontrar qualquer alívio.

Parti.

Lá, diante de nenhuma reposta, fui levada a acreditar que, em Viena, os vestígios deixados por Freud e a música de Mozart me dariam, senão o elixir definitivo, pelo menos a embriaguez.

Parti novamente.

Era fevereiro. Hundertwasser Haus, Figaro Haus, mansões barrocas das ruas do bairro de Stephansdom, Schönbrunn, tudo coberto de neve. A pele trincada. Das fendas abertas em minhas mãos, sangue brotando. As luvas de couro, forradas de lã, tinham sido esquecidas na Acrópole de Atenas.

Eu não havia lido O mal-estar na civilização e estava pretensiosamente convencida de que o mal-estar era só meu e não da civilização. Mais do que Freud, Mozart, óperas no Burgtheater, sinfonias no Konzerthaus, cafés no Demel ou no Sarcher, me chamou atenção a má vontade dos vienenses que custavam a responder – quando respondiam – ao mais simples pedido de informação, pronunciado em inglês. E também o homem do hotel barato que me olhava esquisito todas as vezes que eu pedia a chave da sala de banho – apesar do frio, conservei o hábito de tomar banho pela manhã e à noite –, até o dia em que não resistiu e quis saber se havia algo errado com a minha pele.

Incapaz de desistir do desejo e de fugir da frustração, duas das três saídas para a dor, apontadas por Freud, escolhi a terceira: fui em busca de um prazer substituto. E o encontrei quando andava pela rua Kärntnerstrasse, num dos muitos quiosques ali instalados que vendiam tortas e doces. Amêndoas açucaradas tornaram-se o meu prazer vienense.
Diariamente, comprava três pacotes, cheios delas, até a borda, entrava num trem qualquer para uma direção qualquer e percorria a cidade, olhando-a de longe, sem coragem de penetrá-la. Dias e dias se passaram. Até que me dei conta de que a Karlskirche, uma das mais belas igrejas em estilo barroco de Viena, não me era mais estranha. Fui embora.

Em pensamento, voltei algumas vezes para tentar tirar da lembrança das amêndoas açucaradas da Kärntnerstrasse um resquício de prazer substituto, cada vez mais distante.

É 2006. É maio. É dia seis. É o sesquicentenário do nascimento de Freud. São muitas as homenagens ao criador da psicanálise clínica. Na TV, passam cenas da casa de Freud – transformada em museu –, no edifício nº 19 da Berggasse, onde morou até 1938, quando a Áustria foi anexada pelos alemães e ele mudou-se para Londres.

Na Folha, leio um artigo da psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco, publicado originalmente no Le Monde, no qual ela afirma que, “aproximando Grécia Antiga e vida burguesa, Freud propôs uma nova abordagem da psique humana e da cultura ocidental”. E mais:

“Fascinado pela morte e pelo sexo, mas desejando explicar de forma racional os aspectos mais cruéis e mais obscuros da alma humana, Freud teve a idéia genial, em 15 de outubro de 1897, aos 41 anos, de trazer ao palco das dinastias trágicas da Grécia Antiga o pequeno tema privado da família burguesa do fim do século, de que se ocupavam na mesma época todos os psicólogos especializados no estudo das neuroses: ‘Cada espectador’, diz (em carta a Fliess – Wilhelm, com quem trocou extensa correspondência), ‘foi um dia no germe, na imaginação, um Édipo que se aterroriza diante da realização de seu sonho transposto para a realidade’”.

Fui à Grécia e a Viena; tive prazer ao sentir o açúcar das amêndoas da Kärntnerstrasse derreterem na boca; li O mal-estar na civilização. Por enquanto, só fui capaz de perceber que o mal-estar é da civilização e não apenas meu. A dor ainda me invade por todos os lados. Uma dor que, tomara, um dia, Freud possa explicar.

*Jornalista, mestranda em Literatura Brasileira, autora, com Carlos Heitor Cony, de "O Beijo da Morte"/Objetiva, ganhador do Prêmio Jabuti/2004, entre outros livros. Colunista da Flash, trabalhou na Folha de S. Paulo e nas revistas Quem/Ed.Globo e Manchete.

Um comentário:

  1. Essa dor só pode ser saudade, de alguém, de um tempo, de uma outra vida. Mesmo quando se explica, não para de doer. Permanece.

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