África
– O berço da civilização
*
Por Urda Alice Klueger
Depois
de amanhã, em Blumenau, vai ocorrer a Quarta Festa dos Descendentes
da Família Klueger, isto é, da minha família. Faz poucos anos que
começamos a fazê-la, e a iniciativa de fazer-se tal festa
movimentou energias e informações das quais sequer suspeitávamos.
Descobrimos que descendíamos de um único rapaz (meu bisavô),
imigrante alemão, e que se casara em Blumenau em 1862, na época em
que todo o Vale do Itajaí possuía um total de 607 moradores (não
entram neste cômputo os moradores índios, então – e às vezes,
também agora – considerados um pouco – ou bastante - diferentes
de gente).
Sei
que é uma festa fazer tal festa, e que um dos meus primos chegou a
fazer uma pesquisa, onde se conseguiu rastrear os antepassados até
1383, e que só vendo para crer como é divertido estar-se numa festa
assim.
O
que eu queria falar aqui, no entanto, era sobre as reflexões que tal
festa me suscitou, já lá desde a primeira. Descobrimos que,
passados 140 anos, aquele jovem Klueger que foi meu bisavô tem,
hoje, cerca de 1.000 descendentes. Daí vocês dirão: 1.000
descendentes de um único rapaz, em apenas 140 anos? Pois é, é isto
aí mesmo. Na primeira leva de nascimentos brasileiros já veio uma
turma de 12, e a coisa só foi aumentando.
Então
vem minha pergunta: e a África?O que aconteceu com a África, que
durante 350 anos teve roubados os seus jovens mais fortes, mais
bonitos, mais saudáveis; que durante 350 anos foi espoliada
sistematicamente da sua melhor gente? Como seria a África hoje, se
não tivesse sido saqueada da sua gente, se tivesse se desenvolvido
naturalmente, dentro das suas potencialidades? Quantos descendentes
um jovem pode ter em 350 ou em 500 anos (pois a espoliação começou
faz 500 anos)? 10.000? 100.000? Não faço ideia. Só tenho a
estatística da minha família.
Eu
já viajei pela África, e antes de ir pensava que ela seria como a
América, uma adolescente pronta para ficar grande, inteiramente
voltada para o futuro (ao contrário da Europa, que acho que já está
muito velha), mas descobri que não é bem assim: a África agora é
que se prepara para entrar na adolescência, é uma jovem que ainda
está acabando de crescer. O colonialismo e o neocolonialismo fizeram
demasiado mal a ela – E A FALTA DA SUA MELHOR GENTE, por 350 anos
tirada sistematicamente de lá, impediu-a de ter o desenvolvimento
que teria. Metade da África veio nascer na América e engrandecer
este nosso continente – e há que contarmos os milhares e milhares
de jovens africanos que morreram nos porões dos navios negreiros, e
de maus tratos, nas mãos de donos insensíveis, e de todos aqueles
que não tiveram a oportunidade de deixar descendentes. Como seria a
África, hoje, se não tivesse sido espoliada como foi, primeiro da
sua gente, e depois comercialmente?
A
maioria das pessoas não faz ideia do passado glorioso da África. Dá
para começar pelo Egito (disso vocês lembram, né?), mas havia
muitos outros grandiosos reinos na África subsaariana, e eu vou
contar uma coisa que vai deixar a quase todos os leitores de queixo
caído: das primeiras Universidades do mundo, duas ficavam na África.
Eram entidades cheias de gente sábia, e nos séculos XIV, XV e XVI,
os nobres europeus brancos mandavam seus filhos estudar nas
universidades africanas, tamanha a qualidade de tais centro de
ensino. Acabei de olhar para o mapa atual da África, e fiquei um
pouco em dúvida sobre onde foram tais universidades. Pelas minhas
contas, aquele reino é mais ou menos onde hoje está Gana, Costa do
Marfim e outros muitos pequenos países que o europeu criou
artificialmente no século XIX naquele continente profundamente
ferido.
Dá
para pensar que um rapaz que veio para o Brasil faz 140 anos tenha
hoje 1.000 descendentes, sem fazer um paralelo com a amargura de um
continente que perdeu seus filhos da maneira mais odiosa possível?
Acho
que não dá.
Blumenau,
22 de Maio de 2003.
*
Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela
UFPR, autora de vinte e seis livros (o 26º lançado em 5 de maio de
2016), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e
“No tempo das tangerinas” (12 edições).
Belíssima reflexão. Primeiro tira a gente e depois os bens materiais, e depois se diz que o que falta é trabalho, o atraso é sina, é índole. Quem tirou deveria devolver e ainda seria pouco. É lógico que as pessoas voltariam apenas se quisessem. Como é difícil fechar essa conta.
ResponderExcluir