O
jornalista que colocou a ética no banco dos réus
*
Por Guilherme Meirelles
A
esmagadora maioria dos profissionais de imprensa no Brasil pode não
ter a menor ideia de quem foi o jornalista e escritor americano Joe
McGinniss, morto aos 71 anos, no dia 10 de março (de
2014),
em Massachusetts. McGinniss não era nenhum Gay Talese ou John
Hersey, mas deixou o seu nome no jornalismo literário americano
tanto pelas suas obras recheadas de realidade e ficção como pelas
encrencas em que se envolveu. Nos portais, os parcos obituários se
limitaram a citar seus trabalhos de cunho político, como The
sellling of the President (lançada
no Brasil com o título Vende-se
um Presidente,
há anos fora de catálogo), que lhe deu fama nacional, sobre a
campanha de Richard Nixon à Presidência, e o mais recente, a
controversa he
Rogue: searching for the real Sarah Palin,
no qual traça um perfil surpreendente da conservadora líder
republicana, em que não faltam situações de uso de drogas e até
um caso extraconjugal, negado de forma enfática por ela.
No
Brasil, o nome de Joe McGinniss ficou conhecido como personagem do
livro O
Jornalista e o Assassino (Companhia
das Letras, 1990), de autoria da jornalista Janet Malcolm,
colaboradora da prestigiosa revista New
Yorker.
No final da década de 70, quando estava meio em baixa, McGinniss
fechou um contrato com uma editora para escrever um romance
jornalístico, mediante um adiantamento de US$ 300 mil, nos moldes
do new
journalism,
sobre o assassinato de Colette MacDonald, então grávida, e suas
duas filhas, Kimberly e Kristen, de cinco e dois anos de idade. As
vítimas foram brutalmente assassinadas em fevereiro de 1970 por meio
de pauladas e facadas, em Fort Bragg, na Carolina do Norte. O
principal suspeito era o médico Jeffrey MacDonald, que negou o crime
desde o início, apesar de várias evidências reveladas pela
polícia.
Médico
de sucesso e bem visto pela comunidade local, alegou que estava
presente na residência e que teria visto quatro homens chacinando
sua mulher e suas famílias e, ao tentar defendê-las, foi nocauteado
e ficou levemente ferido. A história jamais convenceu as
autoridades, mas em um primeiro julgamento MacDonald foi absolvido
por falta de provas. Inconformada, a Justiça americana reabriu o
processo e MacDonald viu-se novamente obrigado a provar a sua
inocência. Foi quando manteve contato com McGinniss, que se
apresentou ao réu disposto a escrever um livro contando a sua
inocência. Meses após o primeiro encontro, MacDonald foi novamente
julgado e condenado à prisão perpétua pelos três assassinatos.
Ética
jornalística e liberdade de imprensa
Graças
à legislação americana, o jornalista e o assassino continuaram
mantendo contatos presenciais e trocando correspondências. Em todas
elas, o tom proposto por McGinniss era sempre de colaboração e
garantia que a obra seria uma ferramenta que o ajudaria a alterar a
decisão da Justiça para uma pena mais branda.
Porém,
no decorrer das entrevistas e da apuração dos fatos, McGinniss
reformulou a sua convicção e passou a enxergar MacDonald como um
psicopata frio e cruel, sem jamais revelar ao réu sua nova versão
sobre os crimes. Lançado em 1983, Fatal
Vision tornou-se
um best-seller e
provocou uma reviravolta no caso junto à opinião pública. Nas
correspondências, a promessa era que MacDonald seria apresentado
como “pai e marido extremado”, “médico dedicado” e
“realizador esforçado”. Mas, o que se lia em Fatal
Vision eram
termos como “sedento de publicidade”, “mulherengo” e
“homossexual latente”. Com a repercussão do livro, nos anos
posteriores, todos os recursos apresentados pela defesa do médico
para reabertura do caso foram negados pela Justiça.
Na
prisão, revoltado com o que considerava uma traição e um gesto
antiético, MacDonald moveu um processo contra McGinniss e, em 1987,
após diversas audiências, optou-se por um acordo no qual McGinniss
pagou (por meio da seguradora da editora) US$ 325 mil a MacDonald. As
provas apresentadas (cartas e gravações) pelo assassino
demonstravam de forma cabal que McGinniss havia lançado mão de
meios antiéticos para poder concluir seu livro. O desfecho do caso
abalou a reputação de McGinniss e provocou um questionamento sobre
a Ética nas práticas do Jornalismo. Afinal, como jornalista, ele
foi correto ao fechar um acordo com o biografado mediante a promessa
de um livro que lhe fosse favorável? Ou deveria ter rompido o acordo
(e consequentemente o contrato com a editora) a partir do momento em
que deixou de acreditar na inocência do réu?
Em O
Jornalista e o Assassino,
Janet Malcolm disseca profundamente a ética no jornalismo ao
entrevistar advogados envolvidos no caso e reproduzindo fartos
trechos das cartas e gravações dos dois principais personagens.
Fora de catálogo há anos, o livro pode ser encontrado em sebos e é
uma leitura fundamental a todos que se interessam em desvendar os
limites entre ética jornalística e a liberdade de imprensa.
Passados 27 anos do acordo judicial, Jeffrey MacDonald permanece
preso na Carolina da Norte e tem perdido todos os recursos para obter
a liberdade condicional.
(Transcrito
do portal “Observatório da Imprensa”)
*
Jornalista.
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