A
linguagem popular para doenças não existe mais
*
Por Mara Narciso
A
minha mãe Milena Narciso nasceu em 1934 e se formou médica em 1974.
Dedicou-se a Ginecologia e Obstetrícia, e, sendo uma mulher
observadora e com excelente capacidade analítica, enfeitava a nossa
vida com histórias pitorescas de uma linguagem típica. Dizia que
seu avô Jason Gero de Souza Lima, comerciante de diamantes e
fazendeiro contava a vida e educava os muitos filhos com ditados
populares, coisa que a mãe dela Maria do Rosário de Souza Lima
também fazia. Uma “agregada” da casa tinha uma maneira diferente
de se comunicar. Quando viu o primeiro caminhão, chamou a minha avó,
apelidada Du: “Vem ver, Du, a ‘zelação’. Ela é movida a
‘magnífico’”. Noutra ocasião, a primeira vez em que ela
sentiu os efeitos do álcool, falou: “Está me dando uma
‘celebreza’”.
Na
meninice Monteiro Lobato, Rubem Braga e Paulo Mendes Campos fizeram
minha cabeça. Desde então ando de olho nas palavras. As pessoas que
não leem, falam da forma como entendem. O “eu não assino” é
mais comum no meio rural, e ainda hoje é alta a incidência de
pessoas sem o direito a ler. Nesse mundo analfabeto não existe
cérebro e sim célebro, barrer, regra, “perca”, e outras
expressões desconhecidas dos livros. O Word marca todas elas em
vermelho.
Na
década de 1970 a comunicação no norte de Minas era de boca em
boca, por jornal, revista e rádio. A televisão restrita pegava mal.
Havia poucas boas estradas e as noticias demoravam a chegar, assim o
noticiário impresso do mês passado continuava interessante. O meu
Tio Indalício, irmão do meu Avô Petronilho Narciso, que morava na
fazendinha Aliança, mandava buscar em Montes Claros jornais e
revistas velhos. Tudo servia, pois a notícia valia por mais tempo.
Meu tio era um homem humilde, de olhos azuis profundos, amoroso,
encantador. Junto com ele, ao redor de uma imensa gamela de
feijão-catador, nós seus sobrinhos-netos, ficávamos abrindo as
vagens e conversando nas noites frescas da roça. Ali ouvíamos
palavras que mal sabíamos o que eram, e que adoçavam a nossa vida
junto às cantorias e o violão do vaqueiro Chico Faria, irmão do
Mestre João Faria. Por esta porta eu vislumbrava outra cultura.
Quando
minha mãe se casou em 1953, foi visitar meu avô paterno Antônio
Alves da Cruz em sua fazenda, um lugar ermo, na Serra das Araras, na
região de Januária. A viagem foi a cavalo, e pelo caminho aparecia
onça pintada. O choque cultural e de linguagem foi gritante. Parecia
outro país. Décadas depois, quando Milena atendia consultas de
pessoas da zona rural, mencionava o palavreado da gente dos rincões
isolados, um quase dialeto. Nem sempre era fácil decifrá-lo. Regra
e perca acima citados, são menstruação e aborto. Mãe do corpo é
útero, fato é intestino, “botar os bofes para fora” é estar
cansado, bolota do olho é globo ocular, “vilida” é mancha
branca no olho, “dordói” é conjuntivite, coração “trupicar”
é estrassístole, “panarício” é osteomielite, “espinhela
caída” é problema no esterno, “dor na apá” é dor na
escápula, “xistose” é esquistossomose, “barriga d’água”
é cirrose hepática, “fraco do pulmão” é pessoa com
tuberculose, provocar é vomitar, câimbra de sangue são fezes
hemorrágicas, nascida é furúnculo, acesso é crise de convulsão,
bilora é desmaio de fome, avexame é falta de ar, entalo é
dificuldade para engolir, encalhado é com o intestino preso, “aquela
doença” é câncer.
Atualmente,
mesmo gente pouco escolarizada, pelo efeito da comunicação de massa
tem um linguajar apropriado para descrever seus sintomas e suspeitas.
Muitos já pensam num diagnóstico, mesmo sem ir ao Google. Surtos de
dengue, zika, chicungunha, febre amarela, gripe H1N1 são de
conhecimento geral. Poucos desconhecem a importância de procurar o
médico caso surja um nódulo no corpo. As mulheres, diante de um
sinal ou sintoma querem investigar. Os homens criticam suas
companheiras, mas alguns visitam o cardiologista, e, ainda
timidamente o urologista. A medicina avança, as pessoas procuram
diagnósticos precoces para ter suas doenças curadas ou domadas
chamando-as pelo nome universal. Sem apelidos. A precariedade da
medicina primitiva ficou para trás.
*
Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia
Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de
Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”
Pois é, Mara. Efeitos colaterais do perigoso Dr. Google, talvez... Abraços.
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