A arte de absorver conceitos
*
Por Débora Guedes
Juquinha volta para casa com
sua roupa sem marca, rasgada, desbotada e suja. Chega, e... surpresa.
Não liga a TV. Entra na cozinha, abre a geladeira e bebe sua já
comum garrafa d`água. Quando chega sua mãe, e pergunta como foi seu
dia, ele simplesmente responde com uma sobrancelha arqueada de
desaprovação, emitindo um som indecifrável, que soava como algo
parecido com “ahhn”.
Instantes depois, dona Graça,
a mãe, liga a TV para assistir um de seus programas femininos
favoritos que passam toda tarde. Ouve, então, pela primeira vez, em
algo em torno de duas semanas, a voz do filho, gritando: “Aaahhh!
Desliga essa porcaria! Eu odeio o sistema!”, assim mesmo, como se
estivesse falando do sistema braile de escrita para cegos ou de um
novo sistema de radiodifusão.
Odiar o sistema... o tão
famoso sistema. Odiar a Rede Globo, a Coca Cola, o McDonald’s, os
EUA, a música popular comercial... Tal prática, considerada por
alguns indício de sua ativa militância, já é de praxe em qualquer
roda de conversa entre amigos. De tão comum, frases com tal caráter
são ditas indiscriminadamente, às vezes sem querer, já foram
fixadas em nossa consciência e, cada vez que surge em pauta uma
palavra como “coca”, de imediato surge alguém dizendo: “Eu
odeio a indústria! Eu odeio o capitalismo! Eu odeio a Coca Cola!”.
Hoje a
atitude que, anteriormente, ia contra a corrente, é a
majoritariamente seguida. A “esquerda” tornou-se “direita” e
as pessoas cada vez mais se sentem centro dos padrões pregados pela
sociedade ao terem tais comportamentos antes abominados pela “massa”,
o que faz com que sejamos contrários. Sim, a locução verbal “ser
contrário” pede um complemento. Quem é contrário, é contrário
a algo ou a alguém. Entretanto, aprendemos apenas a ir contra, o
objeto é irrelevante na frase. Nos tornamos “rebeldes sem causa”,
mais tristes, mais vulneráveis, mais amargos.
É notável
que o papel de alienadora, de bruxa da Branca de Neve, cabe muito bem
ao nosso atual sistema midiático, à indústria fonográfica e à
forma e estrutura governamental vigente. Conseqentemente, a
indignação e tentativa de fazermos com que tal sistema
melhore
seus métodos é louvável e necessária.¨
O que busco, através desse
texto, não é a crítica aos pensamentos revolucionários, à luta
contra a estagnação da sociedade. Acredito, apenas, que, apesar de
todos os problemas e falhas contemporâneos, ainda há muito de
positivo a ser aproveitado por nós dentro desse mundo essencialmente
tecnológico e metódico. A vivência de Juquinha, que poderia ser
Pedrinho, Zezinho ou Mariazinha, deve ser acometida pela indignação
e tentativa de transformação da estrutura do nosso meio, porém não
interrompida e terminada por elas. Juquinha tem, além do direito, o
dever de viver, não simplesmente de existir. Mesmo que o pano de
fundo dessa vida seja composto de anúncios publicitários, políticos
com malas de dinheiro e empresas multinacionais.
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Jornalista formada pela PUC-Campinas
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