Generosa autodoação
O
escritor norte-americano John Updike afirma – colocando a afirmação
na boca de um personagem do seu romance “O encontro” (traduzido
para o português, mas que parece haver passado batido, dada a
escassez de referência a ele) – a seguinte verdade, que pode até
soar como lugar comum, mas que não é: “As palavras, quaisquer
palavras, são o modo de darmos a alguém uma parcela de nós
próprios”. Se isso é verdade em relação ao que falamos (e de
fato é), maior e mais generosa essa autodoação se torna quando
“damos” essas palavras a “alguém” por escrito.
Falando
(a menos que o façamos de forma generalizada, ao microfone de uma
emissora de rádio, por exemplo), doamos a tal parcela de nós
próprios a uma, duas ou no máximo três (caso nossa fala não se
trate de aula, de palestra ou de conferência) pessoas. Escrevendo...
esse universo amplia-se exponencialmente e torna-se ilimitado. No
caso, o “céu é o limite”. É rigorosamente impossível estimar,
mesmo que aproximadamente, pelo menos com razoável margem de acerto,
quantas pessoas (e quando e onde), irão ler o tal do nosso texto.
Podem ser pouquíssimas, próximas do zero, como esse número pode
ascender a assombrosos milhões, e em vários idiomas. Paulo Coelho,
o escritor brasileiro mais lido no mundo, na atualidade, que o diga.
Mas ele não conta. É um fenômeno raro.
O
raio é que raramente sabemos o tamanho e o alcance desse nosso
“sucesso”, caso venha a ocorrer. Não raro, morremos amargurados
e feridos, nos julgando escritores fracassados quando não
injustiçados, sem que de fato o sejamos. Ademais, para nós, o êxito
não se mede pelas cifras ostentadas por nossa conta bancária. A
literatura, como negócio, como meio de ganhar dinheiro, acreditem,
salvo raríssimas exceções, é péssimo negócio, é uma tremenda
furada. É, sim, caso produzamos literatura de qualidade, generosa,
quando não superlativa, ou seja, generosíssima autodoação. E
vocês acham que isso é pouco? Eu não!
Ciente
de tudo isso, persisto neste apaixonante, mas não raro frustrante
mundo das letras. Já se tornou vício, e sem possibilidades de
regeneração. Mesmo que queira, não consigo parar de escrever. Não
poderei, pois, me queixar caso não me sinta lido e nem prestigiado
(como tantas e tantas e tantas vezes me sinto). Não estou iludido.
Ninguém me prometeu o sucesso entregue de bandeja. Estou ciente das
agruras e da indiferença das pessoas, alvos do que escrevo. Como em
tudo na vida, dependo das tais das “circunstâncias”, tantas
vezes abordadas pelo filósofo espanhol José Ortega y Gasset e sobre
as quais também escrevo amiúde, para obter êxito no que faço.
Dependendo delas e do seu “gerador”, o acaso, tanto posso ser
lembrado, um dia (quando, não sei) como “gênio das letras”, num
indeterminado e nebuloso futuro, quanto ser encoberto para sempre sob
o opacíssimo manto do ostracismo e ser esquecido até pelos
descendentes.
Ademais,
não podemos reclamar, pois também nos “nutrimos” de ideias, de
textos, de livros de outros escritores, de centenas, de milhares, de
dezenas de milhares deles, que nos fizeram (e fazem) ser o que somos.
E estes, certamente, sentiram o mesmo que sentimos, ou seja, dúvidas,
ansiedades, incertezas etc.etc.etc. além de imensa indiferença.
Reitero, pois, o que escrevi recentemente, neste espaço, a propósito
de um tema que não me recordo no momento qual foi:
“Os
grandes artistas tendem a exercer influência decisiva na formação
da nossa personalidade e caráter, permitindo-nos conhecer situações,
comportamentos e circunstâncias os mais diversos e extremos, sem que
precisemos passar por essas experiências pessoalmente. E quando algo
análogo ao que tratam nos ocorre, contamos com caminhos e
alternativas já conhecidos para sairmos de enrascadas ou para
usufruirmos plenamente os episódios benignos e favoráveis que
surgirem. Os grandes artistas estabelecem, sobretudo, sua identidade,
que refletem nos personagens que criam. Generosos, nos ofertam a
possibilidade de libertação do espaço, do tempo e até da morte
que, se não a evitam (e não nos ensinam a evitar, pois é
inevitável) sugerem como aceitá-la serenamente, como realidade
impossível de ser mudada”.
William
M. Burroughs queixou-se, certa feita, deste nosso insistente
exercício do texto. Declarou: “A escrita como meio é limitada,
não há dúvida. O escritor ainda tem que se deparar com palavras
numa página, não há como escapar disso. Coisas tipo minimalismo
expressionista, que funcionam bem em pintura, como nas telas com
variação mínima de cores, não são muito aplicáveis na escrita.
Quer dizer, você poderia escrever 20 páginas usando uma variação
mínima de palavras, mas ninguém iria ler, não é?”.
O
curioso é que o leitor, aquele ocasional, não afeito à leitura,
para a qual não formou hábito, não se dá conta da vulnerabilidade
da comunicação escrita. Não entende que para deixarmos claras
nossas ideias, não dá para sermos “minimalistas”. Somos
forçados a nos estender e até que nem tanto. Todavia, ele reclama
da extensão do nosso texto e, não raro, vale-se desse fator como
pretexto para não ler o que escrevemos. Na comunicação oral, nem
sempre precisamos nos preocupar com estilo ou até mesmo com o rigor
semântico e/ou gramatical. Um ou outro errinho que deixamos escapar
tendem a passar despercebidos. Ademais, usamos, em nosso auxílio,
para tornar mais claro e expressivo o que transmitimos alguns
artifícios, como a entonação da voz, os gestos, o olhar etc. Já
na escrita... nada disso existe para nos auxiliar. Pense nisso, caro
leitor, antes de reclamar de algum texto um pouco mais extenso, mas
que você perceba que esteja bem escrito. Seja justo e valorize a
“dádiva” com que está sendo agraciado. Afinal, como diz o
povão, “de cavalo dado não se olha os dentes”.
Boa
leitura!
O
Editor.
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