terça-feira, 29 de maio de 2018

Editorial - Generosa autodoação


Generosa autodoação


O escritor norte-americano John Updike afirma – colocando a afirmação na boca de um personagem do seu romance “O encontro” (traduzido para o português, mas que parece haver passado batido, dada a escassez de referência a ele) – a seguinte verdade, que pode até soar como lugar comum, mas que não é: “As palavras, quaisquer palavras, são o modo de darmos a alguém uma parcela de nós próprios”. Se isso é verdade em relação ao que falamos (e de fato é), maior e mais generosa essa autodoação se torna quando “damos” essas palavras a “alguém” por escrito.

Falando (a menos que o façamos de forma generalizada, ao microfone de uma emissora de rádio, por exemplo), doamos a tal parcela de nós próprios a uma, duas ou no máximo três (caso nossa fala não se trate de aula, de palestra ou de conferência) pessoas. Escrevendo... esse universo amplia-se exponencialmente e torna-se ilimitado. No caso, o “céu é o limite”. É rigorosamente impossível estimar, mesmo que aproximadamente, pelo menos com razoável margem de acerto, quantas pessoas (e quando e onde), irão ler o tal do nosso texto. Podem ser pouquíssimas, próximas do zero, como esse número pode ascender a assombrosos milhões, e em vários idiomas. Paulo Coelho, o escritor brasileiro mais lido no mundo, na atualidade, que o diga. Mas ele não conta. É um fenômeno raro.

O raio é que raramente sabemos o tamanho e o alcance desse nosso “sucesso”, caso venha a ocorrer. Não raro, morremos amargurados e feridos, nos julgando escritores fracassados quando não injustiçados, sem que de fato o sejamos. Ademais, para nós, o êxito não se mede pelas cifras ostentadas por nossa conta bancária. A literatura, como negócio, como meio de ganhar dinheiro, acreditem, salvo raríssimas exceções, é péssimo negócio, é uma tremenda furada. É, sim, caso produzamos literatura de qualidade, generosa, quando não superlativa, ou seja, generosíssima autodoação. E vocês acham que isso é pouco? Eu não!

Ciente de tudo isso, persisto neste apaixonante, mas não raro frustrante mundo das letras. Já se tornou vício, e sem possibilidades de regeneração. Mesmo que queira, não consigo parar de escrever. Não poderei, pois, me queixar caso não me sinta lido e nem prestigiado (como tantas e tantas e tantas vezes me sinto). Não estou iludido. Ninguém me prometeu o sucesso entregue de bandeja. Estou ciente das agruras e da indiferença das pessoas, alvos do que escrevo. Como em tudo na vida, dependo das tais das “circunstâncias”, tantas vezes abordadas pelo filósofo espanhol José Ortega y Gasset e sobre as quais também escrevo amiúde, para obter êxito no que faço. Dependendo delas e do seu “gerador”, o acaso, tanto posso ser lembrado, um dia (quando, não sei) como “gênio das letras”, num indeterminado e nebuloso futuro, quanto ser encoberto para sempre sob o opacíssimo manto do ostracismo e ser esquecido até pelos descendentes.

Ademais, não podemos reclamar, pois também nos “nutrimos” de ideias, de textos, de livros de outros escritores, de centenas, de milhares, de dezenas de milhares deles, que nos fizeram (e fazem) ser o que somos. E estes, certamente, sentiram o mesmo que sentimos, ou seja, dúvidas, ansiedades, incertezas etc.etc.etc. além de imensa indiferença. Reitero, pois, o que escrevi recentemente, neste espaço, a propósito de um tema que não me recordo no momento qual foi:

Os grandes artistas tendem a exercer influência decisiva na formação da nossa personalidade e caráter, permitindo-nos conhecer situações, comportamentos e circunstâncias os mais diversos e extremos, sem que precisemos passar por essas experiências pessoalmente. E quando algo análogo ao que tratam nos ocorre, contamos com caminhos e alternativas já conhecidos para sairmos de enrascadas ou para usufruirmos plenamente os episódios benignos e favoráveis que surgirem. Os grandes artistas estabelecem, sobretudo, sua identidade, que refletem nos personagens que criam. Generosos, nos ofertam a possibilidade de libertação do espaço, do tempo e até da morte que, se não a evitam (e não nos ensinam a evitar, pois é inevitável) sugerem como aceitá-la serenamente, como realidade impossível de ser mudada”.

William M. Burroughs queixou-se, certa feita, deste nosso insistente exercício do texto. Declarou: “A escrita como meio é limitada, não há dúvida. O escritor ainda tem que se deparar com palavras numa página, não há como escapar disso. Coisas tipo minimalismo expressionista, que funcionam bem em pintura, como nas telas com variação mínima de cores, não são muito aplicáveis na escrita. Quer dizer, você poderia escrever 20 páginas usando uma variação mínima de palavras, mas ninguém iria ler, não é?”.

O curioso é que o leitor, aquele ocasional, não afeito à leitura, para a qual não formou hábito, não se dá conta da vulnerabilidade da comunicação escrita. Não entende que para deixarmos claras nossas ideias, não dá para sermos “minimalistas”. Somos forçados a nos estender e até que nem tanto. Todavia, ele reclama da extensão do nosso texto e, não raro, vale-se desse fator como pretexto para não ler o que escrevemos. Na comunicação oral, nem sempre precisamos nos preocupar com estilo ou até mesmo com o rigor semântico e/ou gramatical. Um ou outro errinho que deixamos escapar tendem a passar despercebidos. Ademais, usamos, em nosso auxílio, para tornar mais claro e expressivo o que transmitimos alguns artifícios, como a entonação da voz, os gestos, o olhar etc. Já na escrita... nada disso existe para nos auxiliar. Pense nisso, caro leitor, antes de reclamar de algum texto um pouco mais extenso, mas que você perceba que esteja bem escrito. Seja justo e valorize a “dádiva” com que está sendo agraciado. Afinal, como diz o povão, “de cavalo dado não se olha os dentes”.


Boa leitura!

O Editor.


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