Barro
Branco
*
Por Afrânio Peixoto
Os
dias passavam no Barro Branco numa sucessão rápida e descuidada, ao
passo que se operava a conformação necessária do tempo e que as
distrações incessantes do campo tomavam a atenção de Paulo. E
percebendo que lhe voltava a serenidade e a paz, mais se absorvia nas
diversões simples da vida da roça, que o tinham valido. Ele, que
sempre fora um desatento à natureza, nessa inconsciência espantada
das crianças inteligentes que veem e ouvem, mas sentem apenas
exteriormente a representação da própria curiosidade e imaginação,
era agora quase um epicurista sutil, a retirar de cada aspecto da
natureza - pedra, águas, árvore, ninhos, casa rústica, ou paisagem
- uma multidão de observações felizes, logo da primeira impressão
transformadas em imagens tumultuosas... Constante nesse vezo
irreprimível de trocar a percepção das coisas sentidas em
representação adequada ou fantasiosa, comparava-se, e aos artistas,
a moedeiros obcecados que onde encontrem uma cintilação de ouro, no
minério, na escória, na pepita, são levados a cunhar a medalha
nítida e perfeita que lhe dará o circular e viver para o gozo
humano. Muitas vezes, saindo para o campo, armado de espingarda e de
petrechos de caça, e volvendo sem ter dado um tiro, nem se
lembrando, mesmo ao acaso, de acordar um eco na floresta, ele se
dizia pago dessas horas de excursão, enlameado embora, ou arranhado
de espinhos, pois caçara imagens, vendo, contemplando, divagando...
Nesses
meses procurara reviver todas as alegrias e tristezas da vida do
campo; recapitulara numa inteligência afetiva e numa compassividade
tranqüila todos os mistérios que encantaram ou assustaram seu
coração de menino. Em volta da fazenda não ficaram córregos e
valados, cachoeiras ou boqueirões, rechãs ou espigões de serra,
sem a sua visita amável e melancólica, agora que, se não tinha
mais o espanto dos olhos da infância, sentia a saudade das emoções
que outrora lhe causaram. Em casa não perdera nenhuma dessa visões
singelas e quase rituais da vida sertaneja. A diligência afanada das
manhãs, pelas vacas e cabras a ordenhar, o banho frio nos riachos de
vale embrumado, o café ou primeiro almoço farto de guloseimas da
roça, a partida para a lavoura, a malhada, a caça, ou a feira, as
sestas lânguidas e bocejantes dos meios-dias encalmados, a volta
fatigada e contente nas tardes suaves e tristes, a ouvir a melancolia
do aboio e acompanhar o esmorecimento lento do crepúsculo: tudo ele
soubera reviver com volúpia demorada de lembrança e um gozo
constante na presença.
Depois
da dispersão curiosa e ativa em busca da natureza, a concentração
íntima no convívio dos homens. Coisas e gentes do sertão, como lhe
aparecíeis, na mesma simplicidade forte, na mesma ingênua poesia! A
noite era sempre docemente ocupada no Barro Branco. Lia na varanda
para o Ângelo, o Sérgio e algum adventício, a história de Carlos
Magno e dos Doze Pares de França, comovendo-se com eles por bravuras
e façanhas, desacreditadas hoje, mas eternamente interessantes,
enquanto os homens forem rústicos e simples ou se lembrarem que a
humanidade teve uma infância e eles foram
meninos. Em torno da mesa familiar e à luz de uma lâmpada de
petróleo, enquanto os homens fumavam e Luisinha cosia, repetira
longos romances de Dumas pai, com as suas peripécias, façanhas,
ardis, sacrifícios, desprendimentos, sempre animado e feliz, porque
ter curiosidade e satisfazê-la foi sempre desejo e contento humano.
Outras
vezes, ficava a ouvir as proezas de caça e de vaquejadas, transes
arriscados e artimanhas sutis contra feras e bois bravos, misturados
por caçadores e vaqueiros aos entretenimentos práticos da vida,
quando a chama da fogueira os reunia no prazer de uma fumaça e no
maior de despertar a curiosidade, e dar um interesse. Já lhes
aprendera a gíria difícil e expressiva e não encontrava mistério
quando ouvia ao Sérgio contar que dera na malhada grande com uma
novilha bargada, ponta baixa, com uma estrela na testa, bico de renda
e buraco de bala na orelha direita, forquilha e entalhada por cima na
outra orelha... ou riscar com a ponta de um garrancho, no chão
frouxo, o ferro da pá esquerda, uma flor com um monograma incluso:
era a marca do Zé Lopes, do Encravado. E as histórias de Trancoso,
façanhas, guerrilhas, tretas, esconjuros, assombramentos, notícias
de casos rústicos e comuns
pareciam-lhe mais divertidos e sadios que as literaturas perversas,
indecorosas, as vaidades imbecis e os jornais interesseiros, que
alimentam a curiosidade intelectual dos civilizados...
Protegido
pela sombra na janela aberta, enquanto o luar escorria sobre a parede
do oitão como uma gaze doirada que lhe velasse poeticamente a
construção grosseira, passara
serões ouvindo a velha ti’Ana contar histórias aos meninos...
histórias que ele aprendera com terror ou curiosidade, que o fizeram
rir e às vezes chorar, e muitas vezes recolher-se no sono para
sonhar e sofrer com elas, nas indiscrições dos que não se contêm,
mesmo dormindo. Eram fadas amáveis, príncipes perfeitos, animais
falantes. Nossa Senhora disfarçada, mendigos que eram Nosso Senhor,
pequenos heróis humildes, donzelas desvalidas
e de destino magnífico, maldades castigadas, prêmio de esforço e
da sagacidade... todas começadas pelo constante Era uma vez ou Foi
um dia... e terminadas sempre por um vasto bródio ou grande
comezaina, onde houvera doces e guloseimas, a que assistira sempre a
contadora do caso e de que trouxera uma amostra, mas que no caminho
se desviara e perdera ou fora comida por Sancho ou Martinho, que por
isso ficaram barrigudos ou calvos... A pequenada ria do cômico dessa
malvadez, quando a última frase aparecia: entrou por uma porta, saiu
por outra, rei meu senhor
que me conte outra... As vozes débeis e a curiosidade incansada
queriam mais, e pediam... Conte outra... aquela do gato do botas...
Não, a da moura torta...
E
assistia de novo, ou os evocava a todos os brincos infantis, as
piculas, as bocas de forno, a senhora Dona Sancha, o esquenta-sol, a
cabra-cega, o anel-anda-na-roda... e cânticos... e descantes de
cantadores... e sambas... e batizados e casamentos rústicos... e até
os seus primeiros enleios de primavera... o seu violão... a sombra
confidente da velha cajazeira... seu sacrifício e sua renúncia...
meninice encantada que passara e que revivia na contemplação de
outras felizes e que iam passar também, mas cuja saudade doce e
carinhosa lhe espraiava uma umidade quente nos olhos e lhe
descompassava um apressado bater de coração...
Esquecera
o Amparo e o Rio... finalmente. Os jornais que Pedro lhe enviava
ficavam atados aos maços, até que Luísa os consumia para moldes de
vestidos ou para aproveitar o folhetim... No Rio talvez o esquecessem
ou não queriam lembrar-se dele. Teve, pois, uma surpresa, entre
mágoa e contentamento, no dia em que recebeu, tanto tempo depois,
uma carta sumária do velho Lisboa, pedindo-lhe notícias. Quando
voltaria aos seus trabalhos? Estava o Prometeu à espera da
liberdade, que lhe cumpria dar. Fosse pensando em volver. E terminava
com uma palavra afetuosa de saudade...
A
princípio pensou com tristeza e quase protesto: ir-se já, tão
cedo? Mas, desde esse dia, sem o querer, começou a cuidar em tornar
ao Rio... Era tempo de recomeçar e de refazer a sua vida... Trepar
pela montanha abrupta da existência, aprumado, tenaz e vitorioso,
como as árvores das vertentes montanhosas... Fazer a sua sorte como
o Zé Lopes... E uma grande esperança, toda de desejos novos, entrou
a viver nele...
Um
dia, calculada a época dos vapores do Amparo, avisou em casa que
partiria. Foi uma grande pena silenciosa em sua família rústica...
Olhavam-no com tristeza, sem ânimo de se opor, mesmo num pedido, mas
numa quase exprobração de os deixar assim, tão cedo, depois que
lhes comunicara o gosto de o amarem na sua simplicidade afetuosa e na
sua bondade deligente... Várias vezes pegara Luisinha olhando-o de
longe, com olhos compridos, cheios dele e de tristeza. Ela os
desviava, quando apanhada, afastando-se e encobrindo o seu enleio num
sorriso descorado. Ele mesmo andava tristonho e fechado, depois de
tomada sua resolução; custava-lhe despegar-se das coisas e dos
lugares, das gentes e das lembranças que tanto lhe valeram em sua
aflição... possuído de um grande reconhecimento por essa bondade
simples, por essa ternura esparsa em que sarara os males passados e
cobrara energias sãs para tornar a viver.
(A
esfinge, 3a parte, capítulo VIII, 1911.)
*
Médico,
político, professor, crítico literário, ensaísta, romancista e
historiador, membro
da Academia Brasileira de Letras.
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