sábado, 19 de maio de 2018

No dia em que Monalisa chorou - Eduardo Murta


No dia em que Monalisa chorou


* Por Eduardo Murta


As imperfeições que fossem bater em outra porta, porque até nome de rainha tinha. E com nome de rainha, coroa de rainha, se cercava de ares de realeza ali junto ao casario de chaminés baixas daquela Piedade do Paraopeba. A construção lembrando castelos, ao alto, a guarda em sentinela permanente. Era a ninguém menos que ela, Antonieta, que reservavam os peixes nobres e frescos do rio cujas águas, mais à frente, se confundiriam com as do Velho Chico rumo ao Oceano. Lá, Antonieta banhava o corpo a cada manhã, à esperança de que, mais dia menos dia, o mar estaria lhe beijando os pés.
É exatamente como ela se sente quando, madrugada ainda, vão se formando as filas à porta da fortaleza. Gente trazendo o leite morno das cabras que povoam o dorso da Serra do Rola Moça. Os pães assados em forno de barro. Os botões de camélia úmidos de orvalho. Acolhia a tudo com honras de chefe local. O povaréu se ajoelhando em reverência. Aquilo lhe inflava a sensação de que, Deus tendo mesmo gasto sete dias para criar o mundo, sobre seu molde se debruçara por um tempo a perder de vista.

Não era casual que se julgasse a obra de arte mais bem acabada do Criador. Os espelhos que não a ouvissem. Revelariam um sem-número de espinhas perpetuando na pós-adolescência, a protuberância do queixo, o nariz em curva aquilina. Ou o maldisfaçardo desalinho das pernas. Era assunto proibido por lá. E quem se atreveu provou o gosto severo da lei. A lei era ela. É a língua de Efigênia, notem, decorando um dos postes da praça, já seca há tempos. E no vidro sobre o balcão da farmácia flutuam os olhos de Ferdinando, ex-oculista de plantão do vilarejo. Tudo por haver ousado reparar-lhe no ligeiro estrabismo puxando as órbitas à direita.

E até aos médicos a rainha impunha sua lógica. Nos boletins sobre seu estado de saúde, vetava a expressão 'pedra nos rins'. Mandara, fina elegância, substituir por cristais. Mais: encarcerara uma dúzia de escultores pelo que julgava um acinte no esboço de seu busto. Exigira perfeição absoluta nos traços. Um detalhe fora do tom era o bastante para que espatifasse o ensaio em cacos irreparáveis. Considerando grave, não hesitava. Prisão para os infiéis. Aos que via irrecuperáveis, mergulhava a face temperada ao sangue em tanques de piranhas.

A tudo assistia com naturalidade soberana, como fosse uma enviada das divindades, acima do bem e do mal. E ai do súdito que permitisse o encontro de suas roupas pesadas, as capas se sobrepondo, com o chão em minério do lugar. Solitária. Degredo. Chibatadas embebidas em sal grosso. A pecha de impiedosa se alastrou na rota da vizinhança. Dos barões de Belo Vale aos senhores de Congonhas, aristocratas de Sabará e Ouro Preto, falava-se entredentes o nome Antonieta.

Houve espanto, então, quando anunciou seu casamento. Os cartazes pregados vilas afora convidando. Seria para o ano seguinte. Com um detalhe: o noivo estava por ser escolhido. E o decreto real estabelecendo condições. Rico, bonito, poderoso, carinhoso, visionário. E a ressalva final: submisso. Vieram chuva, sol, inverno, seca. Nada resolvido. Sequer candidato se atrevera a circular pelas vielas de Piedade do Paraopeba.

Antonieta não viu remédio. Fez valer a versão de viagem de emergência para negócios na Europa. Fugia, na verdade. Embalou roupas, presentes, o leite de cabra em tonéis no navio que a esperava perto dali. Vetou pompas na despedida, porque seriam júbilo dissimulado a sua desgraça. Tomou os rumos da velha Paris. Ah... se sentia em casa. Os perfumes, a profusão de monumentos. Já tinha tudo em mente. Rumou para o Museu do Louvre. Deu de ombros ao estranhamento dos seguranças àquele cortejo nababesco.

Andou como por instinto ao que buscava. E lá estava ela, diante do que julgava uma representação plástica de toda sua mal-compreendida exuberância. Pediu privacidade. Ninguém viu. Sequer as câmeras captaram o instante em que Antonieta, a rainha, se dissolveu e se projetou em partículas multicoloridas à imensa tela. Sumiu sem que se desse mais notícia. Os jornais da época registraram, em nota, o que se transformaria num mistério vertical. Num dia tal, de um ano dois mil e tal, houve quem jurasse ter visto. Monalisa, rainha de todas as rainhas, chorou.


* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa e “Minhas condolências à senhora Vera”, lançado em dezembro de 2010, com 50 contos. Publicou, também, em parceria, o livro “Galo – uma paixão centenária”. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. Foi um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.




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