Preciso
encontrar uma cerveja bem gelada!
*
Por Mara Narciso
Todas as noites, exceto sábados e domingos, aquela menina tinha de sair com um dinheiro embolado numa mão e um casco retornável na outra, para comprar cerveja. Não levava sacola. Era preciso ser Brahma de casco escuro, trincando de gelada. E que voltasse logo e com o troco certo.
A
menina tinha medo das ruas centrais de Montes Claros, próximas a
Praça Dr. Carlos Versiani, ainda que oferecessem riscos pequenos, se
comparadas aos dias de hoje. Eram mal iluminadas, uma delas de terra,
com vários botecos copo sujo, nos quais era preciso chegar, olhar,
vencer com esforço o batente alto, atravessar todo ele, passando por
entre as mesas, sentir os olhares masculinos sobre seu corpinho
magro, raquítico, no qual já apontava os botões mamários, e
chegar ao fundo dele. Morena, franzina e tímida sentia o cheiro dos
homens suados, da pinga e da gordura velha desses locais frequentados
por trabalhadores depois do expediente. O espaço de quase todos eles
era estreito, de chão com ladrilhos hidráulicos, e na entrada havia
vasos mal cuidados com espada de São Jorge ou comigo-ninguém-pode,
para espantar o mau-olhado. Aproximava-se da madeira ensebada do
balcão alto demais para ela. Atrás dele havia o dono do lugar, tão
sujo quanto as demais coisas dali. Após ouvir o pedido, o homem saia
em direção à geladeira roliça e larga, de oito portas, e,
displicente pegava uma cerveja qualquer, praticamente ignorando a
presença dela. Firme, lembrando-se das exigências, a menina
analisava o produto. Muitas vezes tinha de rejeitá-lo, agradecer,
fazer o caminho inverso, buscar a saída, voltar à rua escura, e
avançar quarteirões até encontrar outro bar.
Podia
subir quase toda a Rua Dr. Santos. Noutro boteco tudo se repetia.
Nova travessia de mesas, audição de gargalhadas, podendo não ser
vista, ou, pelo contrário, ser olhada, afinal era uma estrangeira
num ambiente inóspito. E então, mais uma tentativa. Quando tinha
sorte, podia voltar para casa, mas, pelo horário, mais de 21 horas,
as cervejas boas já tinham sido consumidas. Após várias entradas e
saídas, e já a muitos quarteirões adiante, tinha de levar alguma
coisa, mesmo arriscando-se e tomar um pito. Jamais poderia voltar de
mãos abanando. Algumas vezes acertava numa bem gelada, que vinha
queimando sua mão. Por sorte nunca a deixou cair. E se estivesse
longe, a cerveja esquentava pelo caminho. Andava rápido para
encurtar a penitência. Além disso, quem esperava, já estava semi
alcoolizado, tinha bebido desde o final do dia, num desses mesmos
bares, durante 3 horas pelo menos, e desejava continuar mergulhado
num mundo paralelo. Mostrava orgulho por não consumir cachaça.
Na
hora de ele ir para casa, deveria comprar sua cerveja. A menina nunca
entendeu o motivo disso não acontecer (talvez devido ao casco).
Então, voltava para o apartamento pobre que a família alugava e
algumas vezes não conseguia pagar o aluguel. Subia os 49 degraus de
escuridão, pois há muito as lâmpadas estavam queimadas e ninguém
as substituiu. Colocava a cerveja no congelador, e esperava pela
bronca que não tardava. Todos os dias a ordem se repetia, e ela
obedecia, sem falar um “a”, pois não era possível questionar.
Questionamentos viriam depois, no transcorrer da vida, quando faria o
gênero rebelde que obedece todas as regras. Até ali, seguia os
passos da sua mãe, uma dissidente calada, oprimida pelas chibatas da
indiferença e do silêncio.
No
ano de 1966, viviam aquela pobreza em que faltava muita coisa, menos
a cerveja, afinal, ao chefe da casa tudo, aos outros a escassez e a
obediência. A menina tinha onze anos, e não pensava, pois a ela não
cabia sentir raiva, apenas obedecer. Entrava nos bares como um robô,
exata, quase sem olhar para os lados e sem hesitar em seu objetivo.
Atenta, desde pequena ouvia sua mãe falar: caso algum homem
desconhecido converse com você, oferecendo bala ou doce, não
aceite, fuja e se ele insistir, comece a gritar. Por sorte isso nunca
aconteceu em tempo algum. Mas o aviso já estava dado desde o berço.
No bar não seria diferente, no entanto, vendo os vídeos de hoje, e
a associação para o crime, não é difícil imaginar o risco dessa
criança entrando em bares à noite. Como seria fácil um
desaparecimento, considerando que mentes criminosas nunca foram
prerrogativas da atualidade. Isso para suprir o desejo de beber
cerveja do seu pai, necessitado de mais álcool.
*
Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia
Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de
Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”
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