Porque
Lulu Bergantim não atravessou o Rubicom
* Por
José Cândido de Carvalho
Lulu Bergantim veio de
longe, fez dois discursos, explicou por que não atravessou o Rubicon, coisa que
ninguém entendeu, expediu dois socos na Tomada da Bastilha, o que também
ninguém entendeu, entrou na política e foi eleito na ponta dos votos de
Curralzinho Novo. No dia da posse, depois dos dobrados da Banda Carlos Gomes e
dos versos atirados no rosto de Lulu Bergantim pela professora Andrelina
Tupinambá, o novo prefeito de Curralzinho sacou do paletó na vista de todo o
mundo, arregaçou as mangas e disse:
- Já falaram, já
comeram biscoitinhos de araruta e licor de jenipapo. Agora é trabalhar!
E sem mais aquela,
atravessou a sala da posse, ganhou a porta e caiu de enxada nos matos que
infestavam a Rua do Cais. O povo, de boca aberta, não lembrava em cem anos de
ter acontecido um prefeito desse porte. Cajuca Viana, presidente da Câmara de
Vereadores, para não ficar por baixo, pegou também no instrumento e foi
concorrer com Lulu Bergantim nos trabalhos de limpeza. Com pouco mais, toda a
cidade de Curralzinho estava no pau da enxada. Era um enxadar de possessos! Até
a professora Andrelina Tupinambá, de óculos, entrou no serviço de faxina. E
assim, de limpeza em limpeza, as ruas de Curralzinho ficaram novinhas em folha,
saltando na ponta das pedras. E uma tarde, de brocha na mão, Lulu caiu em
trabalho de caiação. Era assobiando "O teu-cabelo-não-nega, mulata,
porque-és-mulata-na-cor" que o ilustre sujeito público comandava as
brochas de sua jurisdição. Lambuzada de cal, Curralzinho pulava nos sapatos,
branquinha mais que asa de anjo. E de melhoria em melhoria, a cidade foi
andando na frente dos safanões de Lulu Bergantim. Às vezes, na sacada do
casarão da prefeitura, Lulu ameaçava:
- Ou vai ou racha!
E uma noite, trepado
no coreto da Praça das Acácias, gritou:
- Agora a gente vai
fazer serviço de tatu!
O povo todo, uma
picareta só, começou a esburacar ruas e becos de modo a deixar passar
encanamento de água. Em um quarto de ano Curralzinho já gozava, como dizia
cheio de vírgulas e crases o Sentinela Municipal, do "salutar benefício do
chamado precioso líquido". Por força de uma proposta de Cazuza Militão,
dentista prático e grão-mestre da Loja Maçônica José Bonifácio, fizeram correr
o pires da subscrição de modo a montar Lulu Bergantim em forma de estátua, na
Praça das Acácias. E andava o bronze no meio do trabalho de fundição, quando
Lulu Bergantim, de repente, resolveu deixar o ofício de prefeito. Correu todo
mundo com pedidos e apelações. O promotor público Belinho Santos fez discurso.
E discurso fez, com a faixa de provedor-mor da Santa Casa no peito, o Major
Penelão de Aguiar. E Lulu firme:
- Não abro mão! Vou
embora para Ponte Nova. Já remeti telegrama avisativo de minha chegada.
Em verdade Lulu
Bergantim não foi por conta própria. Vieram buscar Lulu em viagem especial, uma
vez que era fugido do Hospício Santa Isabel de Inhangapi de Lavras. Na despedida
de Lulu Bergantim pingava tristeza dos olhos e dos telhados de Curralzinho
Novo. E ao dobrar a última rua da cidade, estendeu o braço e afirmou:
- Por essas e por
outras é que não atravessei o Rubicon!
Lulu foi embora
embarcado em nunca mais. Sua estátua ficou no melhor pedestal da Praça das
Acácias. Lulu em mangas de camisa, de enxada na mão. Para sempre Lulu
Bergantim!
(Porque Lulu Bergantim
não atravessou o Rubicon, 1971).
*
Jornalista, contista e romancista, membro da Academia Brasileira de Letras.
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