terça-feira, 19 de julho de 2016

Resíduos


* Por Assionara Souza


Minha mãe morreu aos vinte e oito anos acometida de uma mudez aguda. Um dos piores silêncios que já baixou sobre a minha família. Desses que a palavra fica presa dentro e se multiplica agilmente. Assim como se um pensamento descritivo minucioso.

Eu via isso quando ela penteava o cabelo, aquele olho vítreo pro espelho, era a doença. Eu. Meu olho via o olho dela. É um sinal que a doença dá. Principalmente nesses momentos de início. É uma doencinha muito danada, essa. Afeta muito as mulheres da minha família. E não é loucura.

Louca, mesmo, teve uma minha tia avó chamada Joana. Mas Joana falava muito. Os homens diziam que era ela a desvairada. Aceitou bem o diagnóstico. Tomou veneno e, antes de morrer, urinou-se na sala grande da casa vomitando impropérios. O demônio da palavra a habitava.

Minha mãe começou com os silêncios dela, eu tinha oito anos. Os fios de cabelo que ficavam no pente, tristeza infinita em cada gesto. Mínimos. Ínfimos. Olhava. As mãos de dedos longos juntando cada sobra de existência. Os fios de cabelo quando se morre ainda permanecem. A prova inorgânica.

Minha mãe tinha o cabelo longo e os olhos tristes e distantes. Era já a doença. Olho pensante. Um dia ela me deu um caderno com capa de flores. Ali, decidi. O que a doença deixava escapar, eu juntava.

Teve uma manhã, me arrumando pra escola, ela disse: "estudo é uma coisa muito importante pra pessoa". Eu sorri transbordante da figurinha para a coleção. Escrevi. Letras minhas. O remédio bom da palavra saindo dela. Cura.

Minha mãe não falava nada que não significasse. Meu pai era diferente. "Cuidado o carro"; "Olhe de um lado e outro". Meu pai sempre foi um homem matemático; pensava muito em ficar rico. Má temática. Esquecia-se dos outros nessa idéia infame. E mesmo porque matemática deste modo cru, mulher desfaz.

Minha vó, que também quando decidiu silenciar enganou todo mundo, matou-se no devagar do secreto, entendia muito bem contar luas e adivinhar ocultos mistérios. Dela anotei: 'a língua é o chicote do corpo'. Talvez pensasse em tia Joana, a desvairada. Porque mulher gosta muito da palavra. E quando falta, a doença chega. Sorrateira. Sedutora. Eu sei que há muitas maneiras de se pegar essa doença. Ainda mais que as mulheres da minha família têm muita facilidade para o silêncio. É um descuido, e pronto! começam a parar olho demais numa coisa só, boca cerrada, minimalismos.

A última filha que a minha mãe teve já veio com a doença de nascença. A primeira palavra que falou foi 'não'. Minha avó chamou minha mãe ao lado. Só se olharam. Porque também, por mais que se tenha já essa coisa latente, esse silêncio aguardante, às vezes é outra palavra que um diz pra aquela pessoa e já finca raiz a mudez absurda. A palavra que não diz.

Não adiantava nada meu pai falar. Trazer as coisas da rua, do mundo, grugurejar notícias. O silêncio da doença não aceita forma alguma palavra sem peso. Eu sei. Pois aquele dia mesmo. Eu ali, tanta espera o coração. Ouvi a voz. Aguardei. Atardescia sinfonicamente. Não era? Lembras? Eu e tu. Tantas outras vezes. Me ouves, agora?

Pois aquela tarde tão grande e pronta pra sustentar a exata palavra. Por que não a disseste? É impossível às mulheres da minha família suportar a falta da palavra. Veio com uma força estúpida: o sintoma. Espalhou-se liquidamente o silêncio rasgante dentro de mim. Foi por esse tempo, meus olhos desistiram de ti; meus braços desistiram de ti. Meu corpo todo adoeceu da ausência de teu gesto.

Talvez aqui dentro há muito tempo venha eu tentando entender o início desse meu esquecimento de vontade. São de uma inutilidade tremenda as novidades que me trazes do mundo. A estúpida palavra pronunciada fisicamente. As mulheres de minha família sofrem do mal da palavra. Não há repouso em tua alma às coisas que eu digo. Tua palavra não me atinge. Minha mãe morreu aos vinte e oito anos de idade acometida de um silêncio absurdo. Somos, tu e eu, inimigos muito íntimos. Meu olho no espelho vê.

* Escritora potiguar que nasceu em Caicó/RN, em 1969, mas mora em Curitiba/PR. É doutoranda em Estudos Literários pela UFPR, onde pesquisa a obra de Osman Lins. “Cecília não é um cachimbo” (7Letras/2005) é sua obra de estreia na literatura. Publicou, também, o livro”Amanhã. Com sorvete!”.





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