sábado, 16 de julho de 2016

Sirva de prólogo

* Por Heráclito Graça



Meu caro Gil Vidal,

Rendendo-me à sua intimação reiterada, envio-lhe as primeiras tiras do trabalho, já concluído, a que por simples estudo e para meu exclusivo ensinamento me entreguei, confutando por ordem alfabética algumas opiniões e sentenças do Sr. Cândido de Figueiredo derramadas na primeira série dos artigos filológicos que publicou no Jornal do Comércio desta capital sob a epígrafe “O que se não deve dizer”, e nos três volumes das Lições práticas da língua portuguesa, volumes, que por motivo daqueles artigos, e quando o autor passou no mesmo Jornal a ocupar-se dilatadamente da nossa inextricável ortografia e de estrangeirismos, procurei ler e efetivamente li, admirando a profusão, brevidade e leveza dos capítulos, e perfilhando a doutrina em quase tudo.

É V. um exemplar na arte de escrever. Em breve trecho revelou-se exímio escritor e perfeito jornalista político, diariamente com pleno conhecimento e propriedade tratando o assunto que o preocupa e expressando-o em linguagem elevada e perspícua, com precisão, concisão, vigor e simplicidade maravilhosa, coisas que raramente andam juntas.

Assim, muito me edifica dizendo e supondo V. que da publicação de meus pobres reparos a alguns pontos filológicos e vernáculos do Sr. Cândido de Figueiredo virá proveito a quem em muitas aperturas procura o fio do labirinto da ciência da linguagem portuguesa, lamentando que ainda não tenha esta a fixidade de outras línguas, da francesa, por exemplo.

Em todas as línguas e na sua constante evolução há e há de haver dúvidas e incertezas. Na francesa, se a parte ortográfica logrou uniformizar-se, o mesmo não sucede com a construção. Unicamente aos que não a conhecem gramaticalmente, serão estranhas as inumeráveis dificuldades que os mestres registram, ensinando os meios mais seguros e adequados de solvê-las, e evitar erros grosseiros. Vale muito ao francês o estudar sua língua e somente a sua língua. O português e o brasileiro sabem mal a língua riquíssima e harmoniosa que lhes tocou em sorte, e, desdenhando-a, leem e aprendem por livros franceses em toda a carreira da vida.

Creio que do meu trabalho, que V. porfia em publicar, ressaltará principalmente um ato: ver-se que é tão vasto e basto o material dos nossos clássicos, que até um literato e filólogo do tomo do Sr. Cândido de Figueiredo, provavelmente por escassez de tempo para consultá-los com vagar à medida que aprestava a reposta ilustrativa às multíplices questões que lhe eram sujeitas, os esqueceu às vezes, equivocando-se, e induzindo, por isso, em erro a consulentes e leitores, a quem era seu propósito esclarecer e instruir, como o prova a valorosa campanha que há dezenas de anos sustenta indefesso em Portugal contra os corruptores da língua de seu país, nomeadamente contra os escritores da imprensa diária e periódica que a deturpam com estrangeirismos, solecismos, incorreções e destemperos, porventura em maior cópia do que entre nós os confrades.

Oxalá que o ilustrado Sr. Cândido de Figueiredo, com a superioridade de seu espírito culto, receba sereno minha humilde crítica, já compenetrando-se dos intuitos que a geraram, conformes aos seus, inspirados pela mesma santa causa e ardente amor à pureza da língua materna, já benévolo indicando-me os erros e equívocos que eu cometer. Só os espíritos pequeninos se consideram sabedores de tudo e indefectíveis em suas ideias e pareceres, bamboleando-se em vaidades, que se enviperam irritadiças à primeira e mais leve observação. E o padre Antônio Vieira dizia: quem não é dócil, não pode ser douto.

Abraça-o seu velho amigo afetuoso

Heráclito Graça.

24 de fevereiro de 1903.

(Carta publicada no Correio da Manhã, de 26 de fevereiro de 1903)


* Advogado, magistrado, jurista, político, jornalista e filólogo, membro da Academia Brasileira de Letras.

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