domingo, 24 de julho de 2016

Tema recorrente



A solidão é tema recorrente em minhas crônicas. Isto não quer dizer (ressalto) que eu me sinta mais solitário do que a maioria das pessoas ou coisa que o valha. Em absoluto! Sou um sujeito normal, comum, sem nenhuma complexidade psicológica que exija um estudo mais profundo ou até mesmo superficial. Aliás, pelo contrário. Há momentos em que gostaria de estar mais sozinho do que geralmente fico, de gozar de maior privacidade, até para exercer meu ofício com mais afinco e assiduidade, em vão.

Escrever exige silêncio, concentração, recolhimento, um permanente (porém quieto) diálogo conosco mesmos. Trata-se de um ato solitário por excelência. Nem sempre, claro. Quase nada no mundo é absoluto. Houve um tempo em que, por injunções profissionais, era obrigado a produzir meus textos em meio a uma balbúrdia infernal, nas redações, primeiro do Diário do Povo e, posteriormente, do Correio Popular – os dois principais jornais de Campinas, cidade em que resido e onde desenvolvi a maior parte da minha carreira – em que trabalhei.

Até hoje não sei explicar como conseguia coordenar as idéias com tantos decibéis espancando os ouvidos e ecoando no fundo do cérebro. Na ocasião, nem se sonhava com os silenciosos computadores atuais. Nossas ferramentas de trabalho eram barulhentas máquinas de escrever, velhas Olivettis, Remingtons, Underwoods etc, caindo aos pedaços, por excesso de uso e falta de manutenção. Além de 40 ou 50 pessoas martelando, simultaneamente, seus ruidosos teclados, havia ainda muita conversa (e aos berros) ao nosso redor – ou nos telefones que havia em profusão nas escrivaninhas ou entre os repórteres, excitados na volta das ruas com um monte de novidades para relatar aos leitores.

O estranho é que foi nessas redações ruidosas, turbulentas, enfumaçadas (ainda não era proibido fumar no local de trabalho) e agitadíssimas que produzi meus melhores textos. Como? Jamais saberei explicar! Hoje, apesar do silêncio do local em que escrevo, raramente consigo ficar absolutamente só. A todo o momento sou instado a opinar a respeito disso, daquilo e daquilo outro, por e-mail, pelo MSN ou pelo telefone. Somente na hora de dormir consigo ficar razoavelmente sozinho. E, às vezes, nem nesse momento. Babau privacidade!

Além do mais, tanto já falei e escrevi sobre solidão (a pedido dos outros), que até me sinto quase que especialista no assunto. Para poder opinar com propriedade, desenvolvi um aguçado senso de observação. Tornei-me rematado xereta dos sentimentos e reações alheios. Daí sentir-me à vontade para escrever, com razoável conhecimento, a respeito.

A pior solidão, conforme já destaquei em uma das minhas crônicas anteriores, não é a física, a da ausência de pessoas ao nosso redor, mas a psicológica. É a de nos sentirmos incompreendidos, nos mais banais diálogos que mantemos, como se falássemos grego e nossos interlocutores só entendessem o português, ou vice-versa. O poeta espanhol Miguel de Unamuno trata dessa questão no livro “Soledad” e observa, com argúcia, em determinado trecho: “Os homens nunca estão mais sós de verdade do que quando estão reunidos nem nunca se encontram mais acompanhados do que quando se separam”.

Pude constatar isso na prática, num domingo, se não me engano, de 2004. Fui ao estádio Moisés Lucarelli assistir o jogo entre a Ponte Preta e o Internacional de Porto Alegre válido pelo Campeonato Brasileiro. Nas arquibancadas, havia cerca de sete mil pessoas, que podia ver, ouvir, tocar e até, eventualmente, conversar. A maior parte desses expectadores, inclusive, torcia para o mesmo time que eu. Como se vê, embora não nos conhecendo, tínhamos pelo menos uma coisa em comum: a mesma paixão clubística (no caso, pela Ponte Preta).

Findo o jogo, aborrecido com a derrota do meu time, dirigi-me para a minha casa. Enquanto estava no estádio, mesmo que não me desse conta, estava, por paradoxal que pareça, absolutamente sozinho, apesar da multidão que me cercava, já que não me comunicava profundamente com ninguém que estava ali. Assim que nos separamos, todavia, comungávamos da mesma emoção. Ou seja, estávamos aborrecidos e decepcionados com o insucesso do nosso time.

Na verdade, quem havia perdido não fôramos nós, torcedores, mas os atletas que representavam o clube, com os quais dividíamos idêntico sentimento de decepção. Eles nos eram todos sumamente familiares (pela divulgação da imprensa), embora não conhecêssemos nenhum pessoalmente. Portanto, fora do estádio, nenhum de nós, torcedores e jogadores, embora não mais juntos, nos sentíamos mais sozinhos. Uma emoção comum nos irmanava. Estranho isso, não é mesmo?

Há quem atravesse uma vida toda em estado de permanente solidão, a despeito de viver em sociedade; de coabitar com várias pessoas sob o mesmo teto; de trabalhar com várias outras na mesma empresa; de divertir-se com outras tantas em cinemas, teatros, bares, estádios; de ver, cruzar, tocar, sorrir, falar com gente, muita gente.

Estabelecem contatos casuais – agradáveis ou não ao sabor do seu humor e do dos eventuais interlocutores – e ainda assim se sentem sozinhos. E de fato estão. Sorriem para o cobrador de ônibus que os atendeu com cortesia, mas esta é uma comunicação extremamente superficial. Dão uma resposta atravessada para o caixa do banco que julgam que os atendeu com má-vontade, mas isso não gera nenhuma conseqüência afetiva e, quando muito, produz um revide malcriado da vítima do seu mau-humor.

Fazem uma observação casual com o colega da fila do cinema, que estava lendo um jornal abordando a corrupção política e recebem uma resposta mecânica, quando não mero e distraído aceno de cabeça. Nada profundo, nada intenso, nada que lembre, sequer de longe, uma genuína comunicação. São só pequenas “falas”, sem importância, sinceridade ou profundidade, secas, mecânicas e banais, ditas por meros figurantes do drama que se desenrola, sem cessar, no palco da vida, posto que com atores e cenários diferentes. Esta é a solidão mais profunda, que mais dói e que mais nos afeta psicologicamente no cotidiano.

Boa leitura!


O Editor.

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Um comentário:

  1. Casamento que se mantém depois que se acaba, ou seja, a solidão a dois, é a mais profunda e humilhante, que se pode ter, devido à presença onipresente do fracasso gritante. E como é comum!

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