sexta-feira, 15 de julho de 2016

Viciada em velório


* Por Rodrigo Ramazzini


- Lá vem a Dona Miguelita! Ela não pode faltar! O tio nem iria em paz se ela não viesse!, falou um sobrinho do morto.

Ninguém sabe ao certo quando começou essa rotina da Dona Miguelita de participar dos velórios da cidade, mas falam que ela ainda era adolescente quando iniciou com o hábito. Hoje, tem 65 anos e continua com a mesma disposição de quando era nova. Não falha a nenhuma despedida, independente do defunto, se é conhecido ou não. Ela está sempre lá. O fato de morar na mesma rua da capela mortuária facilita o “controle” dos respectivos cerimoniais.

As ações da Dona Miguelita nos velórios são sempre os mesmos. Ela chega, tentando chamar a menor atenção possível, cumprimenta algumas pessoas com acenos discretos e vai ao encontro dos familiares do morto. Abraça-os e deseja força. Reza um Pai Nosso aos pés do velado, se afasta e desloca-se até a cozinha, onde pega um café. Fica por ali, em silêncio, até sorver todo o “pretinho”. Depois vai embora, sem falar com ninguém. Sua “participação” nunca passa de 20 minutos.

Essa rotina transformou Dona Miguelita em uma lenda, cercada de histórias e muitos comentários pela cidade. Uma dessas histórias diz que o motivo dela fazer isso é porque está pagando uma promessa até o final da vida. Outra que ela possui uma síndrome pouco estudada. Ainda que ela tem um pacto com o demônio ou com Deus para “encomendar” o morto (a dúvida sempre é para qual o lado, que varia conforme o defunto). Também que ela faz isso como parte da estratégia da sua campanha para vereadora (apesar de nunca ter chegado perto da política). Uma distinta versão diz que o rito é para curar o trauma da perda do pai quando criança, pois ela não pode participar dos atos à época. Além dessas, tem versões mais amenas, tais como que ela apenas gosta de consolar o próximo, que é uma alma elevada e etc. São tantas as histórias... Enfim... A bem da verdade é que ninguém sabe ao certo a motivação da Dona Miguelita em participar de todos os velórios da cidade.
- Lá vai a Dona Miguelita. Mais um velório para a conta. Provavelmente, a primeira coisa que faça quando chegar lá seja anotar o nome do tio na agenda!, disse o sobrinho do morto ao irmão, enquanto Dona Miguelita caminha rumo à sua casa, depois da participação no velório. 

Paira pela cidade que Dona Miguelita tem uma agenda em que anota todos os nomes da qual participa do velório. Mais um folclore. Ou não.

Um dia a lenda haveria de sucumbir.

Eis que falece um renomado e conhecidíssimo empresário da cidade, o que leva muita gente à Capela Mortuária para se despedir. O velório começara pela manhã e era perto das 15h, mas nada da Dona Miguelita aparecer para pontuar a sua participação, afinal, além do morto, ela tinha virado “atração” dos cerimoniais. A sua ausência já era comentada por todos os presentes, que lançavam olhares sistemáticos para a casa da Dona Miguelita esperando alguma movimentação. Foi então que da residência, sai com certo afobamento e carregando algo na mão, um neto da Dona Miguelita, que se chama Jean. Com um rápido trançar de pernas, ele chega ao velório e todos o olham da cabeça aos pés. Muito bem orientado, faz os mesmos passos da avó. Ingressa na capela mortuária, cumprimenta a família com um forte abraço, reza um Pai Nosso ao lado do caixão e se dirige a cozinha. Lá, tirando de uma sacola de plástico de supermercado, puxa uma xícara e pede para uma mulher que se encontra no ambiente, que encha até a borda. Enquanto ela enche a xícara, Jean aspirando o cheiro do café no ar, lasca sem se dar conta que estava acabando com uma lenda:
- Forte! Bem como a vó Miguelita gosta. Ela está doente e acamada, por isso não pode vir. Me pediu para comparecer e levar uma xícara. Não sei quando a vó começou com esse vício em café de velório, mas diz ela que são os melhores!


* Jornalista e contista gaúcho.

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