segunda-feira, 18 de julho de 2016

A saga de um jardim


* Por Rubem Costa


“No Botafogo sonhei
Os meus sonhos de criança.
Foram tantos que nem sei,
Quase perdi a lembrança,
Mas vivem dentro de mim,
Como o meu velho pião,
Girando sempre sem fim
No pulsar do coração”.


De um antigo cantar, recolho esta estrofe que compus, há anos; em um dia qualquer, quando na alma, inundando emoções, chovia saudade.

Assomou-me de repente a comoção ao saber pelo jornal que o Condepacc tombou a Praça Luís de Camões, florida paisagem que, no meu tempo de menino, a gente só conhecia como Largo ou Jardim da Beneficência Um recanto de paz onde caminharam meus passos e floriu minha vida. Situado entre ruas seculares — Onze de Agosto, Saldanha Marinho, Marechal Deodoro e Sebastião de Souza — o quadrilátero guarda na sua geometria a saga de outras eras, de uma cidade que, assolada pela febre amarela no fim do século XIX — ressurgiu das cinzas, erguida pelo trabalho de cidadãos prestantes que deram de si em favor da coletividade.

A denominação popular advém daí, por ser fronteiriço ao Hospital — Real Sociedade Portuguesa de Beneficência — que a colônia lusitana, numa hora angustiante, construiu, não só para sua gente, mas para a saúde de uma cidade inteira. Em torno da praça que, falando da história, sussurra "estórias" e segreda romances, se aglutinavam, então, nos dias em que vivi criança, soberbas residências de cidadãos prestantes, casarões senhoris que, na ronda do progresso, o tempo engoliu depois sem deixar vestígios. Do jardim onde brinquei construindo sonhos, minhas lembranças de menino se evolaram céleres — em marcha ré — para uma respeitável figura que no entorno da praça morava: Orosimbo Maia.

Bem ali na Rua Onze, vizinho do hospital. Refazendo as contas, aflui-me que, então, começava a década de 30 do século passado. Já nos meus dez anos, sabia de cor tudo que havia em volta do largo e, sem trocadilho, até a cor da casa daquele homem austero, pintada de sépia, revestida de grandes grades negras de ferro batido, com jardim interno, onde floriam rosas. Meu pai, singelo funcionário dos Correios e Telégrafo, o tinha em conta de grande político, louvando seu trabalho em favor da cidade. De pés no chão, por ouvir dizer, eu o admirava, sem saber como era sua figura. Morando na Saldanha Marinho, a caminho do grupo escolar que ficava (e ainda está) na Andrade Neves, invariavelmente passava todos os dias pela moradia, espichando o pescoço para descobrir lá dentro os donos. Um dia em que voltava do colégio, vi abrir-se, rangendo, o portão de ferro e dele sair um homem circunspeto, solene num terno de casimira escuro, ostentando na barriga rotunda, como era costume na época, a correntona de ouro que prendia na ponta o relógio patacão escondido no bolsinho do colete. Espantei-me. Gordo, com a careca abafada no chapéu de feltro e bigodes em neve, pareceu-me o Barão do Rio Branco, cuja foto bem conhecia estampada no livro de História.

Com a prerrogativa de alcaide da cidade, ereto, sem dar conta de minha presença, o velho subiu a pé pela Marechal Deodoro até Andrade Neves para apanhar o bonde que o levaria à Prefeitura. Foi a primeira vez que me deparei com Orosimbo Maia. Contei a meu pai e ele me disse que, desfrutando por lei o direito de usar automóvel no exercício de seu mandato, o guardião da cidade ia de bonde ao trabalho para não onerar o erário público. Pensa na gente, me disse meu velho, é um dos fundadores do Colégio Progresso. Um mês depois, seria setembro, numa quarta-feira, Olívia, minha mãe, mandou-me vestir a roupa de domingo. Nessa fala, em sua linguagem simples, ela estava a me dizer para enfiar-me dentro de um terninho de brim bege acoplado a meias brancas e sapatos pretos. Roupa de ver Deus. Era com ela que ia, todas as semanas, à escola dominical da igreja presbiteriana e também servia para alguma festinha de aniversário. Vamos assistir à inauguração do Teatro Municipal, disse-me explícita. Vai ser agora à noite. Festa de gente grande. Nós do povo, tínhamos de assistir de longe, mas extasiei-me. Ainda que pouco entendesse de estilo arquitetônico, Olívia me afirmou que era o mais belo prédio de Campinas. Estava feliz. Feito só para óperas. Nenhuma outra cidade do interior tem igual, enfatizou.

Assim que descemos do bonde, com o pé na praça, ela acentuou: veja quanta gente importante está chegando. Homens de casaca e mulheres elegantes de saias longas, espartilho e chapéu frondoso, subiam solenes as escadas majestáticas do edifício enorme. Um, dois, três, afinal, seis degraus para chegar ao hall de entrada. Orosimbo estava lá para presidir à inauguração e homenagear o seu predecessor na Prefeitura, Rafael Duarte, a quem se devia à construção daquela casa de cultura, iniciada na década de 20. Ambos mal sabiam, que, trinta e cinco anos após, todos os seus esforços iriam por água a baixo, graças à ação vandálica de um alcaide energúmeno, Ruy Novaes que, talvez para compensar o que lhe faltava, zombou da inteligência campineira, mandando arrasar o edifício à socapa, numa madrugada triste.

Desse crime, entanto, já não adianta lembrar. O que importa apenas é recordar que o Teatro foi inaugurado em 1930 com a apresentação da ópera Il Guarany de Carlos Gomes, o Tonico de Campinas. Inobstante diz a Bíblia (Provérbios 14:13) — “até no riso tem dor o coração e o fim da alegria é a tristeza”. No dia 19 de abril de 1939 (lembro-me bem porque, um ano após, na mesma data, Olívia, minha mãe, que tanto amara o Teatro, viria a falecer) eu, já então repórter do Diário do Povo, haveria de atravessar de novo o Largo da Beneficência, rumo à casa sépia, para cobrir o noticiário sobre o falecimento daquele que ficou na história como o prefeito eterno de Campinas, o velho Orosimbo. Um homem que, tendo automóvel á disposição, andava de bonde para não sacrificar o erário público, mas não se furtou de proporcionar a Campinas um dos momentos mais emocionantes de sua história, marcando seu nome como um dos Mecenas da cidade.


* Professor, poeta e escritor, membro da Academia Campinense de Letras.

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