sexta-feira, 22 de julho de 2016

A morte da rainha de bateria

* Por Rodrigo Ramazzini


Baseado em uma história real.


Dia 08 de janeiro, 08h30min.


Um corpo é encontrado na calçada de uma rua pouco movimentada, no bairro de Laranjeiras, subúrbio da cidade. Uma mulher que se dirige ao trabalho é quem avista o cadáver e chama a polícia. O local é isolado até a chegada da perícia, que aparece 55 minutos depois e começa as suas avaliações. São duas horas de perícia. Não há conclusões definitivas. São elas: corpo de uma mulher, na faixa de 30 anos, aparentemente, atropelada por volta das 00h30min do mesmo dia, enquanto caminhava no sentido centro-bairro da rua, por um carro, marca Volkswagen (foi encontrado o símbolo do para-choque no chão, alguns pedaços de veículo e cacos de vidros, mas que restam dúvidas se têm relação com o caso), que não freou, pois não há marcas no asfalto e nem parou para prestar socorro. O corpo é removido ao Instituto Médico Legal (IML) para identificação e verificação da causa da morte. A princípio, não há testemunhas do atropelamento.
Dia 08 de janeiro, 13h25min.

Tobias chega para trabalhar vindo de ônibus logo depois do almoço e encontra a frente do IML agitada para uma tarde de sexta-feira. Trabalha como perito no departamento a cinco anos. Uma multidão protesta pela morte da mulher no bairro de Laranjeiras. Querem justiça! Mesmo sem a identificação oficial, pois não haviam documentos junto ao corpo, os moradores sabem que se trata de Selminha, manicure e rainha de bateria da escola de samba da localidade. Pessoa querida por todos no bairro. Sem entender a confusão, apesar de intuir o motivo, Tobias vence a aglomeração de moradores e ingressa no prédio do IML, troca algumas palavras com colegas de serviço sobre o tumulto da entrada, a noite mal dormida, o carro estragado e parte para a sua primeira perícia do dia. Tobias encontra-se nervoso, mas acha que está conseguindo disfarçar publicamente. No entanto, ao ver o corpo de Selminha em cima da mesa esperando ser periciado, Tobias fica “gelado”, o suor escorre pelo rosto e axilas. Como imaginara, era ela. O acontecido na madruga retorna com força em seus pensamentos. Em outro canto do IML, os colegas comentam sobre o estado e as olheiras de Tobias naquele dia.
Dia 08 de janeiro, 00h18min.

Tobias sai dirigindo o seu carro depois de uma festa na casa de um amigo no bairro de Laranjeiras em direção a outra festa, no outro lado da cidade. Tomou várias cervejas e fumou três baseados na residência. No entanto, julgava-se em condições de dirigir. Ele sai da casa do amigo, transita por algumas ruas e logo vê Selminha. Ela caminha com o seu salto alto e calça justa, depois de ser largada em uma esquina por um carro. Está a 30 metros de casa quando é abordada por Tobias. Ela continua caminhando e ele acompanha com o carro vagarosamente ao seu lado. Então, Tobias dirige algumas palavras Selminha, que replica esbravejando:
- Sai pra lá, eu disse! Não te enxerga, não? Babaca... Já era! Perdeu!
Tobias para o carro. Selminha segue caminhando, posicionando-se à frente do veículo, que ilumina o caminho com os faróis altos. Ser chamado de “babaca” atinge o seu ego e desperta uma raiva repentina em Tobias. Em surto, diz para si mesmo: “quem essa vagabunda acha que é”? Ele acelera o carro. A intenção era desviar e passar apenas próximo do corpo de Selminha ou atingi-la em cheio?

Dia 08 de janeiro, 08h01min.

Tobias chega com o carro na oficina mecânica do Seu Waldemar, com o para-choque e parte do capô amassado. É o primeiro cliente do dia. Diz para o mecânico que atropelara um cachorro na noite anterior e que tem pressa no conserto, pois pretende viajar nos próximos dias. Está agitado e com a fala embrulhada, o que causa estranheza em Waldemar, mas que, naquele momento, ignora o estado e pensa logo depois que Tobias deixa a oficina: “esses manés compram carro zero quilometro, fazem as merdas e querem que a gente conserte as cagadas em tempo recorde. Aliás, por que será que ele não levou em uma mecânica autorizada? Deve estar na garantia... Azar o dele, eu que ganho”!

Dia 08 de janeiro, 13h50min.

Tobias está diante do corpo de Selminha. É puro nervosismo. Arruma incessantemente as luvas de látex. Já soube que a perícia no local não emitiu laudo conclusivo sobre o caso. A mente inquieta faz mil perguntas para si mesmo, como se fosse uma metralhadora: “digo que não estou apto a realizar esta perícia? Qual motivo alegar? Estou sendo ético com a minha profissão? Confesso que sou o autor do atropelamento? Ou faço uma perícia destoando da perícia do local e digo que a mulher morreu por outro motivo? Será que isso me livraria? Faço ou não faço uma prova contra mim mesmo? Ou faço uma perícia técnica e o destino que se encarregue do resto? Deus! Por que eu fui escolhido para fazer a perícia da pessoa que tirei a vida? O meu destino está nas minhas mãos”?

Dia 08 de janeiro, 14h00min.

O protesto dos moradores do bairro de Laranjeiras em frente ao IML clamando por justiça chama a atenção da imprensa. A falta de pautas no mês de janeiro faz com que a morte de Selminha, em escala, vá tomando uma proporção nos meios de comunicação, do local ao nacional. Fosse outra época do ano, a morte ganharia uma pequena linha na editoria de polícia dos jornais. No entanto, agora, está no noticiário da TV. O mecânico Waldemar assiste ao telejornal, enquanto beberica um café recém passado pela esposa, antes de voltar para a oficina. O ato dos moradores ganha um generoso espaço no noticiário, com diversas entrevistas e hipóteses sobre a morte da rainha de bateria. A esposa de Waldemar comenta:
- Tem que ser um monstro para atropelar uma pessoa e não prestar socorro, né?
O mecânico responde um “É” solto. A ficha cai. Já sabe quem é o monstro e porque o carro não foi para uma oficina autorizada. A questão que lhe inquieta é: “chamo a polícia ou peço um dinheiro para ficar com a minha boca fechada”?
A repercussão nos meios de comunicação faz com que a polícia empregue um grande número de policiais na solução do caso. A resposta para a sociedade precisa ser rápida.

Dia 08 de janeiro, 14h08min.

A inquietude de Tobias perante o corpo chama a atenção dos colegas, que o questionam se está tudo certo. Ele responde que sim. O celular vibra em cima de uma mesa. É uma mensagem do mecânico Waldemar. Eu sei de tudo. Quero R$ 30 mil na minha conta até o final do dia, dizia. Uma sensação de “gelo” percorre a espinha dorsal. “E agora? Tenho um cúmplice ou um delator?, pergunta-se. Se responder à mensagem do mecânico pode estar assumindo a culpa pelo crime. Opta pelo silêncio. Decide fazer a perícia de forma que gere dúvidas se houve ou não o atropelamento. Ou seja, um laudo inconclusivo. Se não há testemunhas e indícios, não há crime. Preciso me livrar dessa...”, pensa. Tobias começa a perícia...

Dia 08 de janeiro, 14h45min.

A polícia invade o IML. Procuram por Tobias e o encontram a periciar o corpo de Selminha. Ele tenta manter a calma diante dos policiais, mas sabe bem pelo qual motivo estão ali.
- Você vai conosco, Tobias!, diz um policial.
- Qual o motivo?, pergunta ele.
- Já sabemos de tudo, replica o policial.
- Tudo o quê?, questiona.
- Você sabe!, rebate o policial.
- Não sei!, ainda tenta argumentar.
Para não chamar a atenção da população que cerca o IML, Tobias é levado como uma pessoa comum, sem ser algemado. No carro policial, que ruma para a Delegacia, pensa no mecânico Waldemar. “Foi ele. Só pode. Mas não há indícios e testemunhas. Vai ser a minha palavra contra a dele”, diz para si mesmo.
Para a surpresa dos moradores que protestam e os jornalistas que cobrem o caso, a polícia diz que encontrou o autor do atropelamento e concederá uma entrevista coletiva para detalhar o caso.

Dia 08 de janeiro, 20h05min.

A cúpula da polícia senta-se em um local previamente preparado para a entrevista. O ar de satisfação é expresso visivelmente nos rostos. Há tempos um caso de repercussão não tinha uma solução tão rápida dos órgãos de segurança. Era necessário dar publicidade a isso. O chefe de polícia começa a entrevista dizendo:
- Já temos o suspeito de ser o autor do atropelamento da rainha de bateria do bairro de Laranjeiras. Trata-se de Tobias Mendes, perito do IML.
Um burburinho toma conta da sala. Repórteres falam ao mesmo tempo. Até que uma voz se sobressai e a questão de como o caso foi solucionado é feita.
- Vou tentar ser didático, relatando passo a passo, de como chegamos até o autor...

Dia 08 de janeiro, 16h18min.

Depoimento. Na Delegacia, Tobias, que durante o trajeto do IML até lá, pensara em negar o crime, troca de decisão ao iniciar o seu depoimento e resolve assumir a culpa pelo atropelamento.
No entanto, planeja uma vingança a quem acha que foi o autor da delação do crime.
- Eu atropelei a rainha de bateria. Mas, eu tenho um cúmplice. Trata-se do Seu Waldemar, dono da oficina mecânica, que disse para eu deixar o carro lá escondido. O atropelamento aconteceu...
Não fora Seu Waldemar que contara sobre o crime para a polícia, que chegou a Tobias por outros meios. O perito esquecera do que torna uma perícia exitosa: os detalhes.

Dia 08 de janeiro, 20h05min.

- Vou tentar ser didático, relatando passo a passo, de como chegamos até o autor. Com a repercussão do caso, começamos a verificar se na área do crime havia alguma câmera de segurança. Encontramos uma câmera em uma residência, na rua paralela ao local do atropelamento. No entanto, as imagens desta câmera eram muito ruins, embora tenhamos conseguido verificar que o único veículo que circulara pela redondeza na hora presumida do crime e cerca de duas horas depois, tenha sido um veículo da marca Volkswagen, com placas de numeração IWJ94XX. Não conseguimos distinguir os dois últimos números. Isso nos levou a acreditar que o símbolo do para-choque encontrado no chão, no local do atropelamento, era do veículo conduzido pelo autor do crime. Não sei se vocês sabem, mas estes símbolos saem com números de série das montadoras, que se associam a um chassi. Ou seja, cada veículo tem uma numeração própria. Assim sendo, pedimos à montadora e quero agradecê-los pela rapidez em nos atender, que pelo número que estava grafado no símbolo, nos falasse qual era a numeração do chassi. De posse do número do chassi, chegamos à placa, que “batia” com a numeração que vimos nas imagens das câmeras. Como trata-se de um veículo comprado zero há pouco tempo e com um único dono no papel, não tivemos dificuldades em chegar ao nome de Tobias Mendes!, narrou o chefe de polícia.
- Qual foi a motivação do crime? O que o acusado contou em depoimento? Quem largou Selminha minutos antes do atropelamento?, perguntou um repórter em sequência ao chefe de polícia.
- Foi um crime motivado por ciúmes! O acusado confessou no depoimento, respondeu.
Um “óóóó” ecoou na sala e antes de ser questionado novamente, o policial seguiu fornecendo detalhes.
- Tobias era familiarizado com o bairro e passou pela rua de Selminha para inspecioná-la. Eles tiveram um caso por três meses e foi ela quem encerrou com a relação, há mais ou menos um mês, o que ele não aceitava. Quem largou Selminha metros antes de casa foi uma amiga, que também prestou depoimento e contou que a deixou metros antes da residência porque Selminha não queria acordar os familiares com o barulho do carro na rua. Aliás, quero fazer uma retificação em minha fala anterior. Dois carros apareceram nas imagens das câmeras de segurança: o de Tobias e o da amiga, assim chegamos até ela, pois as imagens do veículo dela estavam mais nítidas. Voltando à linha de raciocínio anterior... Selminha e a amiga retornavam de uma festa, que a largou a poucos metros de casa e partiu para a sua residência, foi quando Tobias viu a cena e, tomado pelo ciúme, achando que Selminha estava com outro homem, se aproximou, conversaram um pouco, então, ele jogou o carro por cima dela...
A vida e suas versões, condutas éticas e justiça.
O judiciário aceitou o pedido de prisão de Tobias e ele permanece preso. Seu Waldemar se enrolou ao tentar se explicar no depoimento e responde por ocultação de crime em liberdade...
A rainha de bateria foi enterrada com honras no cemitério do bairro de Laranjeiras e homenageada no carnaval pela escola de samba. Depois disso, fora os familiares, ninguém mais lembrou do crime...
Na produtora de filmes de curta-metragem
- Opa! E aí, meu Diretor! Consegui chegar. Trânsito pesado. Tudo bem?
- Tudo bem! Chegou na hora exata. Estava terminando de ler...
- Terminei ontem e já te enviei O que achaste do roteiro? É possível fazer um curta-metragem com ele?
- Gostei! Ficou muito verossímil...
- Que bom!
- Tem um conflito ético... Nesta questão do atropelador e a profissão de perito...
- Esta era ideia...
- Tem o crime e a solução deste crime de forma pitoresca... Tem a questão do cúmplice e a força da pressão da imprensa sobre os órgãos públicos e esse jogo midiático...
- Sim! Sim!
- Tudo muito bom! Mas...
- Eu sabia que tinha um “mas”...
- Não gostei deste final.
- Hum...
- Está... Está... Não óbvio, mas previsível demais... Falta algumas coisas sabe... Alguma coisa que surpreenda... Entende?
- Entendi...
- Quem sabe explora um final que caia nas graças do público ou que gere um suspense ou que gere justamente ao contrário, gere uma revolta em quem assistir ao filme. Algo que mexa com o público! Eu quero ouvir o burburinho das pessoas comentando depois que as luzes forem ligadas no cinema.
- Entendi. Vou reescrevê-lo e lhe envio...
- Isso! Vá lá! Tu podes mais, meu roteirista! Eu vou ficar aqui pensando e te aviso se tiver uma ideia... Ah! Só uma última pergunta: esse teu roteiro é ficção ou podemos realmente dizer que foi baseado em alguma história real?
Breve silêncio. O Diretor insiste:
- E então, rapaz! Tem algum fundo de realidade?
Nervoso, o roteirista sorri amarelo para o diretor e deixa a produtora sem tecer uma resposta...


* Jornalista e contista gaúcho.

Um comentário:

  1. No roteiro há uma brecha. O corpo foi encontrado na calçada de uma rua e o carro passou por cima dela na rua, pois Selminha caminhava lado a lado com o carro que a seguia devagar. O final surpreende, como queria o diretor do filme, pois o roteirista atropelou alguém.

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