Russland 1 – Setembro
* Por
Urda Alice Klueger
(Para Elizabete
Tamanini, Cesar Zillig e Juarez Aumond)
Um dia, lá na aurora
dos tempos, este planeta Terra se formou
todo quente e explodindo em vulcões e derrames de magma; um dia, também,
ele esfriou e veio uma primeira glaciação, e depois, uma série delas, e aí
nesse entremeio foi surgindo a Vida nas suas mais diversas formas, e ontem à
tarde eu caminhei por um pedacinho privilegiado deste planeta, e era tão
visível, ali, tantas destas coisas que vêm desde lá dos tempos mais remotos!
Era uma estradinha no
lugar que quando eu era criança a gente chamava de Russland – hoje, aquele
lugar tão lindo é conhecido como Nova Rússia. Fica em Blumenau/Brasil, e é uma
reserva ecológica, que abriga nascentes de bicas, arroios, riachos – e todas
essas águas juntas acabam formando um rio, à beira do qual costumo acampar.
E era no finalzinho da
tarde, assim já depois que o sol se pusera por detrás dos morros altos, e uma
fina camada de névoa azulada pairava sobre tudo e dentre tudo, principalmente
dentre as árvores daquele resquício de Floresta Atlântica ali preservada,
embora aqui e ali, dentro da floresta nativa, surja um Tannenbaum, ou um
eucalipto, ou florescidos antúrios plantados sob a mata, à beira da estradinha
– e embora exista por ali algumas casas de campo (eu diria: casas-de-mato),
escondidas nos lugares mais inesperados, e umas três ou quatro propriedades
rurais onde, em pastos de grama rasteira, vacas holandesas nos olham
bondosamente com seus grandes olhos líquidos e mansos, e também alguns
campings, e algumas outras curiosidades, como uma roça de cana, alguns jardins
e cachorros, pode-se dizer que a preservação ambiental, ali, é boa, e pode-se
embarcar nela e viajar para a história do passado deste planeta.
O que sempre me chama
a atenção primeiro é a estradinha, quase pendurada na encosta dos morros altos
e quase caindo sobre o rio, lá embaixo – como venho muito a este lugar, tenho
podido observá-lo nas mais diversas situações e estações do ano, e sei que o
único lugar onde ela poderia existir é onde está, que na outra margem do rio é
tudo perau tão escarpado, rochas abruptas disfarçadas sob a camada da floresta,
que não haveria como se ter criado tal estradinha do lado de lá – assim como
vejo hoje, depois de prestar muita atenção, muita gente, nos últimos milênios,
também viu onde era a passagem possível, e aquela estradinha, um dia, começou a
ser aberta e se tornou um caminho feito a pé de índio. Generalizo a palavra
índio por não saber o nome das tantas possíveis nações que um dia por aqui
passaram – afinal, desde a última glaciação, quando o mar recuou destes lugares
onde estou, quanta gente deve ter passado por aqui?
Faz século e meio, lá
por volta de 1860, que um jovem imigrante chamado Julius Bernhard Klüger, que
foi o meu bisavô, também passou por aqui uma primeira vez, e foi cultivar a
terra da sua primeira colônia lá mais para os confins da Russland, e o caminho
já estava aberto. Mais adiante deste camping onde costumo ficar, bem mais
adiante, há um pequeno cemitério com muitos parentes meus enterrados,
comprovação inequívoca dos tantos meus antepassados que um dia aqui vieram
trilhar a estradinha aberta a pé de índio – e que pouca modificação sofreu
depois que os engenheiros e os imigrantes deram uma melhorada nela, com
tratores e enxadas.
Então, ao pôr do sol
de ontem, também eu estava a trilhar a estradinha, o rio espumante e
encachoeirado de um lado, lá embaixo, e as rochas partidas pelo resfriamento do
planeta, em outros tempos, a formar a base dos morros, do outro – e era-me
espantoso observar a quantidade de vida que se agarrava àquelas rochas, musgos,
líquenes, samambaias e outras plantas, cada uma tentando fazer o seu trabalho
de desmanche daquelas rochas que talvez estejam ali desde um antiquíssimo
primeiro derrame de lava aqui nesta região. Talvez aquelas rochas já tenham
passado por todo o calor e por tantas glaciações, e sejam testemunhas de todo o
tanto de vida que já aconteceu por aqui, desde a das plantas, quanto a dos
animais de diversos tipos, sabe-se lá quantos já extintos, e das diversas
nações de gente que por aqui desfilaram, inclusive a dos imigrantes, e sabe-se
lá em quantas delas havia pessoas do meu passado – e ali estão, portando seus
musgos e seus líquenes, e esperando que a próxima glaciação chegue, embora, por
enquanto, o mundo ainda esteja a esquentar, desde o último grande Frio... como
queria eu poder perguntar tantas coisas àquelas rochas! O quanto poderiam elas
me contar, que me escapa a este olhar limitado com que as olho!
Blumenau, 14 de
setembro de 2007.
* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e
doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de vinte e quatro livros (o 24º
lançado em 5 de maio de 2016), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez
edições) e “No tempo das tangerinas” (12 edições).
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