domingo, 17 de julho de 2016

A Menina e Deus



* Por Risomar Fasanaro



A mãe estava debruçada sobre a máquina Singer, costurando. Tinha alguns vestidos para entregar e nos últimos dias ficava até a madrugada para dar conta das entregas. A casa ficava entregue a Marinete, a empregada doméstica. Envolta em seus pensamentos, a mãe não se deu conta quando a menina, chegando bem perto dela disse em tom de segredo: “mamãe, eu descobri uma coisa...”

Ainda absorta em seus pensamentos, ela não ouviu, por isso a menina chegou bem perto do seu ouvido e repetiu: “eu descobri uma coisa...” A mãe então se deu conta da presença da pirralha:
- Descobriu o quê? Não me venha com mentiras, que senão dou-lhe umas palmadas...
- Não, mamãe, é uma coisa que ninguém sabe...
- O que é? Diga logo que tenho muito trabalho, ainda tenho três vestidos pra entregar  até o final da semana. E se for fofoca, já sabe, vai ficar de castigo. Vá dizendo logo!...
- Mamãe,  eu descobri que Deus não existe!

A mãe largou a costura e virou-se para ela com os olhos arregalados:
- O quê???! O que foi que você disse?!
- Eu disse que Deus não existe.
- Onde foi que você ouviu isso, menina desnaturada?
- Eu não ouvi, mamãe, eu descobri.
- Descobriu onde? Está ficando doida pra dizer um absurdo desse? 

A menina sentiu uma onda de felicidade invadindo-a. A mãe largara as costuras para  dar atenção às suas palavras, às suas descobertas. Então aquilo era realmente alguma coisa muito, muito importante.

A mãe levantou-se e, muito irritada, disse:
- Nunca mais repita isso, ouviu bem? Nunca mais! E responda: por que você está dizendo essas coisas? Com quem você está andando que está lhe botando a perder?
- Com ninguém, mamãe. Eu sei que Ele não existe. Porque se Ele existisse me dava uma bicicleta.
- Mas era só o que me faltava! Eu não tenho paciência pra ouvir uma asneira dessas. Marinete! me traz um copo d’água.

Ela notou que a mãe estava realmente muito abalada com suas palavras. Tomou calmamente a água, olhando-a fixamente.
- Essa menina tem uns mistérios que não são pra idade dela. A empregada ouviu e comentou: “será que ela não ouviu alguém dizer isso, dona  Januária?” E ouviu a mãe dizer baixinho, cochichando com a empregada, pensando que ela não ouviria:
- Não...essas coisas são dela mesma. Essa menina é cheia de cavilação. Você não vê com o que ela brinca? Ela não brinca com boneca, não brinca de comidinha, de casinha....ela é diferente...As brincadeiras dela são com gafanhoto...com sabugo de milho...Você não vê ela formando batalhões de gafanhotos? Brinca com cigarra, com caroços de jaca...

Virou-se outra vez , agora irritada, e disse à  filha:
- E nunca mais repita isso. Deus pode lhe castigar! Vá já brincar no quintal antes que lhe dê uma surra!

E continuou baixinho, como se pensasse alto:
- Era só o que me faltava...Uma filha comunista!!!

Tudo começara no dia que, embaixo da mangueira que havia no quintal, ela  tentava descobrir qual era a forma correta de pegar uma lagarta sem se queimar. Descobriu que bastava pegá-la com cuidado pelos pêlos. O que queimava era a barriga da lagarta. Depois achou um casulo. Pegou-o cuidadosamente entre as mãos e viu que a borboleta estava começando a rompê-lo. Olhou-o demoradamente, sentindo todas suas reentrâncias e de repente lhe veio um pensamento. Sim, era aquilo! Descobrira!

Levantou-se correndo soltando o casulo,  e correu para a mãe que naquele instante, como em todos os instantes em que sua infância precisou dela, estava debruçada sobre a máquina Singer, costurando vestidos para aquelas mulheres grã-finas, que podiam comprar cinco, dez, bicicletas para seus filhos se quisessem.

Depois da revelação do seu  segredo à mãe, a menina voltou pra debaixo da mangueira  e a lagarta já não se encontrava mais ali. Nem o casulo. Procurou, procurou, mas não os encontrou. Foi pra debaixo do pé de jurubeba e começou a formar um batalhão com os  gafanhotos. Que bonitos que eles eram... Iguaizinhos aos soldados enfileirados de manhã, no campo de futebol, em frente à sua casa. Continuou pensando na existência de Deus. Quer dizer que se Ele existe mesmo, além de não dar nada que se pede, ainda castiga a gente?

Aquela certeza começara pequenininha, quase invisível: do tamainho de uma semente de maria-sem-vergonha, que ela plantava no jardim e aos poucos ia crescendo, crescendo, até que não agüentava mais e aí explodia e de lá saía o rebento, uma pontinha de nada branca que aos poucos se tornava verdinha e subia pela terra, crescendo, tomando forma de folha, de caule e logo estava coberta de flores. Pois tinha sido assim a sua  dúvida. Nascera ali, escondida dentro dela, no escuro do seu serzinho  menino, sem que ninguém visse; e de repente ela sentiu que vinha crescendo, crescendo, tomando seu peito, inundando sua alma. Não dava mais pra esconder. Era preciso contar a alguém aquela coisa tão grande, tão importante que brotara dentro de si. E escolhera a mãe, a pessoa mais importante da sua vida para a ela revelar sua descoberta.

Lembrou dos tantos dias e noites em que, ajoelhada, rezava pedindo a Deus que lhe desse uma bicicleta. Estava cansada de esmolar uma volta, uma voltinha só às  filhas do capitão. O pai delas havia adquirido uma para cada filha.

Os dias se passavam e o pai não comprava. Ela lembrava-o, pedia e eram sempre as mesmas respostas: não posso, não tenho dinheiro...Mas e o pai de fulana? Ele além de ser capitão, só tem duas  filhas, eu sou sargento e tenho quatro, era a resposta do pai. Só posso comprar uma bicicleta pra você quando Getúlio der um aumento. Mas e as orações? E os pedidos que fazia a Deus, isso não resolvia? Decididamente, Ele não existia, concluiu. E se existia, não tinha poder. Quem tinha poder, quem decidia se a gente podia ou não ter alguma coisa era aquele homem do retrato pendurado na parede, com uma gravata feita com a bandeira brasileira.

Ah... Então essa era mais uma razão para não acreditar nas aulas de catecismo. O padre tinha dito que  Deus era o Todo Poderoso criador do céu e da Terra, mas na verdade  era aquele homem do retrato quem decidia se ela iria ganhar ou não uma bicicleta.
-Quem é Getúlio, papai?
-Getúlio é o presidente.
-E o que é presidente?
-É o homem que governa o país.
-Ahan...então governo não presta, não é papai?

O pai se assombrou com as idéias da filha. Onde ela andava aprendendo tudo aquilo? Ontem não acreditava em Deus, hoje achava que governo não prestava. Decididamente ele, um sargento do exército, morando em uma vila militar  onde  muito raramente entrava um civil, estava criando uma filha anarquista.

Realmente havia muita coisa no mundo que ela não entendia. Não encontrou a lagarta nem o casulo, mas achou uma cigarra no tronco da mangueira. Pegou a cigarra e começou a procurar pra descobrir de onde vinha o canto. Aquietou-se e procurou entender a existência de Deus. Sim, pode ser que Ele exista, pensou.

Por que as pessoas grandes não contam à gente o que elas sabem? Por que  mamãe não conta o que havia antes de haver o mundo? Se Deus existia, onde Ele estava antes de criar o mundo? E se criou tudo isso que existe, por que não lhe dava a bicicleta? Se existisse  e não lhe dava, é porque queria  lhe castigar. Mas castigar por quê? Porque ela não sabia a tabuada  de multiplicar  do  oito e  do  nove?  Mas se Ele existe,  isso não é coisa de Deus. O padre tinha lido direto do Catecismo: “quem é Deus? Deus é um Ser perfeitíssimo, criador do céu e da terra.” Ora, um ser perfeitíssimo não a castigaria porque não sabia as tabuadas do oito e do nove...

Ah... tinha tirado os sapatos e andado na lama. Seria por isso? Mas Deus teria tempo a perder olhando as meninas que andam descalças? Ora, esse Deus não combinava com o que o padre tinha ensinado. Além do mais, procurava ser uma menina tão piedosa. Ia aos terços de maio todas as noites, era uma das escolhidas para levar flores ao altar de Nossa Senhora... Nada disso valia?

Mas...se fosse mesmo o homem da gravata com a bandeira brasileira que mandava, conforme o pai havia dito, então Deus ou não existia ou não mandava mesmo. Era aquele tal de Getúlio quem decidia tudo. Era muito melhor a gente não ter governo. 

Quando voltava da escola, ouvia os soldados comentando: que meninas bonitas, já pensou quando crescerem? Mas a ela não interessava ser bonita. Só muitos anos mais tarde descobriria quantas portas a beleza abria. Via na revista “O Cruzeiro” do que a beleza era capaz. As atrizes de cinema – todas, todas – eram bonitas. Mas a ela aquilo não interessava. O que queria era a sua bicicleta. Será que se ela fosse bonita ganharia a bicicleta?

A mãe dissera que Deus não se ocupava com ninharias. Só se preocupava com coisas grandes.
-Que coisas grandes, mamãe?
-A guerra, por exemplo. Deus se preocupa com o que acontece com as pessoas que vivem na guerra. Que estão morrendo... Deus se preocupa com os que estão doentes nos hospitais...Com quem passa fome...Não vai se preocupar com coisas pequenas, com ninharias...

Ora, se Ele se preocupava com aquelas coisas, por que as guerras continuavam, as pessoas passavam fome... os hospitais estavam cheios de gente doente? Por que ele não resolvia tudo aquilo? E se a bicicleta era ninharia, porque Ele que era Todo Poderoso não lhe dava uma? Não era mais fácil atender às ninharias do que às coisas grandes? Foi o que se perguntou,  quando se sentou de novo embaixo da mangueira.

O paraíso de que o padre falava devia ser igual a Vila de Socorro. Era como se todo o resto do mundo fosse feito de escuridão, e ali, só  ali houvesse luz,  somente  ali habitasse a felicidade. O chão de barro vermelho, as árvores, o rio... Quando de lá se afastava, para passar uns dias na casa dos padrinhos em Areias, era como se tivesse saído da luz e mergulhasse na escuridão.

A casa dos padrinhos tinha um longo e escuro corredor, e a madrinha vivia reclamando de doenças. Toda semana ia ao médico. Ela e o irmão que já havia alguns anos morava com a madrinha, aproveitavam quando ela saía para ficarem sentados na janela cantando, vendo os trens que passavam. Ela gostava de ouvi-lo cantar “guriatã de coqueiro/ fugiu de sua gaiola/guriatã de coqueiro bateu asas e foi embora...”

Quando a madrinha apontava do outro lado da linha do trem, os dois saíam da janela e fingiam que estavam lendo, pra não levar bronca. Ficavam ali, naquele ambiente em penumbra, com  as  janelas apenas semiabertas. Uma casa sem cor, sem alegria.

Dias depois, quando voltava à casa dos pais, já no trem vislumbrava a claridão da Vila de Socorro. Ali podia andar descalça, escondida da mãe, sair na chuva e enfiar os pés na lama vermelha, na estrada que dava pra ponte do seu Alderico. Passar debaixo da cajazeira, que de tão grande parecia se debruçar sobre a estrada, para espiar as pessoas que por lá passavam. Ali tudo era luz, tudo era dia de festa.

Em Socorro não precisava almoçar. O bom mesmo era comer frutas. Quando crescesse só comeria frutas. Achava uma delícia comer jaca, sentir o brilho do néctar derretendo na boca, o gosto do caju, os fiapos de manga entrando nos dentes, os araçás da beira da estrada... Não, decididamente, só queria comer frutas.

A professora contara a história de uns monges que se alimentavam só com frutas. Eram homens santos, dissera. Pronto, descobrira: queria ser santa pra se alimentar só com frutas...
- Mamãe, eu quero ser santa.
- De onde vem essa novidade agora?
- É que nunca mais vou precisar comer arroz nem feijão, nem carne. Vou comer só frutas.
- Ah, é? E como é que a santa vai explicar a Deus que não acredita n’Ele?

Desistiu de ser santa. Passou a jogar o almoço no lixo. Fazia isso aos poucos, para  a mãe não desconfiar. Cada vez que chegava perto dela, a mãe notava que havia menos comida e, assim, pensava que ela estava comendo. O pão, ela atirava atrás dos móveis, Marinete, sua cúmplice, não contava nada, pegava o pão e jogava no lixo.

A mãe ficava verdadeiramente enfurecida com aquela menina estranha que só queria tomar café em canecos “de louça bem fininha, mamãe... a senhora compra pra mim?” Ela não sabia ainda a diferença entre porcelana e louça comum, das xícaras em que os irmãos tomavam café com leite sem reclamar.  Agora se achava, aos oito anos, com o direito de dizer que detestava leite. E se a forçassem, vomitava. A mãe desistira de contrariá-la.

Essa menina parece que é feita de alfenim, cheia de não-me-toques. Não era. Gostava de andar descalça, enfiar o pé na lama vermelha do barro da estrada,  de ficar no meio das meninas e moças que dançavam Pastoril. Gostava de ver as mulheres fazendo renda de bilro nos longos quintais de terra batida, varridos com vassouras de capim verdinho. Gostava de ficar sentadnha ali, ao lado de dona Maria benzedeira... Até aprendera toda a reza, e em casa com três folhas de pinhão benzia o cachorro, as galinhas...

A mãe não queria que andasse descalça. O pai saía de Socorro e ia até a feira de Jaboatão comprar alpercatas de couro cru pra ela e a irmã calçarem no dia a dia. Mas a mãe vivia debruçada na máquina de costura, não via nada do que ela e os irmãos faziam...

O sol começava a ficar menos forte. Levantou-se e foi pra casa. Tomou banho e sentou-se nos degraus da varanda, pra chupar uma manga.

Algum tempo depois, viu o pai que voltava do quartel, com um embrulhinho nas mãos. Atravessava a ponte sobre o rio Jaboatão que ligava a vila dos oficiais à dos sargentos ao mesmo tempo que separava as crianças que tinham os brinquedos que quisessem das que não tinham. Foi correndo ao encontro dele.
-Papai, a gente pode escrever pro presidente?
-Sim, pode sim.
-E ele lê?
-Bom, isso eu não garanto.
- Se eu escrever uma carta pra ele, o Sr. bota no correio?
- Boto sim. Mas você já sabe escrever carta?
-Sei sim, dona Cândida ensinou a gente. Eu até escrevi uma carta pra Doroty Lamour.
-Foi mesmo? E o que você escreveu pra ela?
- Ah... eu pedi a ela que se tivesse algum daqueles sarongs  que ela usa nos filmes, e que não quisesse mais, que mandasse pra mim...
- E você acha que ela vai mandar?
- Não, papai, a gente não pôs a carta no correio. A professora disse que era só pra gente aprender a escrever carta... Mas a que vou escrever pro presidente eu quero que o  Sr. coloque no correio. O Sr. coloca?
- E o que você vai dizer ao presidente?

A menina não ouviu a pergunta do pai. Uma borboleta amarela passou voando e ela, com o vestido todo sujo dos respingos de manga,  saiu correndo atrás da borboleta como se pudesse, com seus braços, agarrar  Deus.

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora,  autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.




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