sexta-feira, 15 de julho de 2016

O repórter porta-voz da polícia, na ombudsman da Folha neste domingo


* Por Urariano Mota


“A inocência na linha de tiro

Ítalo, 10, morreu após ser atingido por um tiro dado por um policial militar que perseguia o carro roubado, que dirigia, ao lado de um amigo de 11 anos. A tragédia foi noticiada na Folha em chamada de duas colunas na Primeira Página (4/06).

Junto de dois adolescentes, de 13 e 14 anos, Waldik, 11, estava no banco de trás de um Chevette quando foi atingido na nuca e morreu. A bala saiu do revólver de um guarda-civil que perseguia carro com suspeitos de um assalto. O crime foi manchete de segunda (27/06). Opção rara em um jornal que prefere destacar notícias das áreas política e econômica.

Em comum, eram crianças que tiveram destino trágico após operações policiais de técnica, no mínimo, questionável. Em ambos os casos, os relatos jornalísticos se alimentaram de informações fornecidas basicamente pela polícia.

Destino semelhante teve o adolescente Robert, 15, morto por PMs um dia antes, também acusado de roubar um carro. Seu caso não chegou à Primeira Página. Sua morte demorou três dias para ser publicada no jornal, narrada no pé de uma página do caderno Cotidiano (29.06).

Dias depois, o universitário Júlio César, 24, morreu após ser baleado na cabeça e o carro dirigido por ele ser atingido por ao menos 16 tiros durante perseguição policial, na zona leste de São Paulo. Não teria respeitado um bloqueio, conforme a PM. Sua morte foi registrada em pequena chamada na Primeira Página.

São casos de dinâmica parecida e lamentável. Tiveram tratamento diferenciando pelo jornal. Com certeza, não foram as únicas vítimas jovens de violência no mês de junho. Estudo apontou que 29 crianças e adolescentes são assassinados no país a cada dia. Por que e quando elas deveriam ser noticiadas pela Folha e com que destaque?

Para a primeira parte da pergunta, a resposta é sempre. O país não deve permitir que o assassinato seja banalizado, em especial o de crianças e adolescentes. Quanto ao destaque, cada caso é um caso, mas é importante buscar um padrão.

Qualquer cobertura de crime que envolva crianças, adolescentes e jovens exige cuidados especiais e atenção redobrada dos jornalistas. Em dois sentidos particularmente: em como tratar e proteger a criança de informações constrangedoras e como lidar com as informações fornecidas por uma criança sobre eventos criminosos que testemunhou.

Relatos policiais devem ser noticiados com distanciamento crítico e sua conduta comparada a padrões técnicos de segurança.

O jornal precisa buscar as informações técnicas que comprovem ou refutem os relatos sejam das crianças, sejam dos policiais. Para ficar no básico: a cena do crime foi mantida intacta? Os depoimentos coincidem ou colidem com as informações recolhidas pela perícia? É preciso que as reportagens de tais casos saiam do disse-me-disse e busquem as provas técnicas.

A Folha teve desempenho irregular nos casos aqui citados.

Para muitos leitores, a Folha sempre é a favor das vítimas e contra a polícia. "O jornal na sua parcialidade só levou em conta o lado da pessoa que cometeu crime", disse um leitor. "Pretende fazer crer aos leitores que a PM executou uma criança inocente e indefesa?", questionou outro.

É fato que a Folha deu pouco espaço para a defesa dos agentes de segurança dos crimes acima. Em 30/06, levou um furo do jornal "O Estado de S. Paulo", que trouxe entrevista com o guarda municipal acusado de dar o tiro no garoto Waldik.

O jornal não deve julgar, nem deve agir como aliado da polícia ou como entidade protetora dos fracos e oprimidos. Sua obrigação com o leitor é relatar o mais detalhadamente possível os fatos, destacar as incoerências e inconsistências de versões, fazer apurações próprias e não se limitar ao relato parcial da polícia.

Na investigação e no relato da linha de tiro da polícia, não pode haver inocência jornalística.

Infrator ou em conflito com a lei?

Reportagem da semana passada informava que "2 em cada 3 menores infratores não têm o pai dentro de casa". O uso da expressão "menores infratores" foi questionado pelo pesquisador Thiago Oliveira, do Núcleo de Estudos da Violência da USP. Propôs como alternativa usar "adolescentes em conflito com a lei". Pouco jornalístico.

O Manual da Redação sugere evitar o termo "menor", em benefício de vocábulos mais precisos, como "criança" ou "adolescente". O secretário de Redação Vinicius Mota não vê problema no uso do adjetivo "infrator" para descrever adolescente que cometeu, nos termos da lei e segundo os trâmites da Justiça, uma infração.

A meu ver, o problema é que, por vezes, usa-se o termo, sem a comprovação da infração”.


Do artigo da ombudsman, destaco os trechos: :


“Em comum, eram crianças que tiveram destino trágico após operações policiais de técnica, no mínimo, questionável. Em ambos os casos, os relatos jornalísticos se alimentaram de informações fornecidas basicamente pela polícia....

Relatos policiais devem ser noticiados com distanciamento crítico e sua conduta comparada a padrões técnicos de segurança.

O jornal precisa buscar as informações técnicas que comprovem ou refutem os relatos sejam das crianças, sejam dos policiais. Para ficar no básico: a cena do crime foi mantida intacta? Os depoimentos coincidem ou colidem com as informações recolhidas pela perícia? É preciso que as reportagens de tais casos saiam do disse-me-disse e busquem as provas técnicas. ...

O jornal não deve julgar, nem deve agir como aliado da polícia ou como entidade protetora dos fracos e oprimidos. Sua obrigação com o leitor é relatar o mais detalhadamente possível os fatos, destacar as incoerências e inconsistências de versões, fazer apurações próprias e não se limitar ao relato parcial da polícia”.    

Louve-se a admissão de que a reportagem virou porta-voz da polícia, como publicamos no sábado, no Diário de Pernambuco http://www.impresso.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/cadernos/opiniao/2016/07/02/interna_opiniao,148699/o-reporter-como-porta-voz.shtml  e republiquei no Luis Nassif Online http://jornalggn.com.br/blog/urariano-mota/o-reporter-como-porta-voz-da-policia-por-urariano-mota . Antes, portanto,  da crítica, no texto mea-culpa da ombudsman.

Mas é claro que para a indignação diante de crimes contra a pessoa humana, noticiados  segundo a versão da polícia, é preciso mais, muito mais. Não nos bastam, como leitores ou jornalistas, as “provas técnicas” dos crimes. Elas se plantam e se falsificam  também, todos sabemos. O relato isento, da denúncia do terror, seria a entrevista com testemunhas e parentes, passando por uma investigação sem trégua, insaciável, dos antecedentes e momentos do crime, que alcançasse até a pré-história dos policiais criminosos.

Será que depois de “O inferno de Treblinka”, de Vassili Grossman, os repórteres, escritores, jornalistas, homens, enfim, não aprenderam que ouvir os relatos dos sobreviventes a esses crimes é fundamental, para não dizer a totalidade, da recuperação e denúncia desses assassinatos? Para quem não conhece a grande reportagem de Vassili Grossman, copio este depoimento:

“Um veterano de Stalingrado certa vez testemunhou Vassili fazendo um pelotão inteiro – até o último homem – entabular uma conversa geral. Muitas vezes o vi conversando com jardineiros, ou escutando com atenção uma mulherzinha que todo mundo desprezava. Vassili Grossman tinha um dom notável para ouvir, e um dom não menor para evocar – mesmo no espaço de poucas linhas – a singularidade de uma vida individual. Ele estava sempre interessado na vida da pessoa como um todo, não apenas em suas experiências de guerra. Essa pode ter sido uma das razões para gente que de outra forma era inarticulada estar sempre muito disposta a falar com ele”.  

Ouvir, escutar as vítimas e todos que as circundam. Amar as pessoas iguais a nós mesmos, que sofreram com a perda e estiveram sob o impacto dos crimes, essa é a lição de Vassili Grossman. E nesse particular sentido a ombudsman, técnica, fala que não devemos ser  “entidade protetora dos fracos e oprimidos”. Mas há um imperativo ético que nos leva a tomar a defesa dos oprimidos, embora mas isso ela ainda não alcance. Quem não chegou a ouvir, ler “O inferno de Treblinka”, não entende a fraternidade que deve existir entre todos os homens. 

Por outro lado, ou do mesmo lado, sei que seguir esse exemplo de Vassili Grossman é uma exigência muito alta para a maioria dos jornalistas. Mas devemos, público leitor, exigir mais que o publicado por todo repórter  porta-voz da polícia. Quando nada, se nos faltar a empatia ou solidariedade para com as vítimas, pelo menos pensemos na defesa da nossa própria, insubstituível e única pele. Sejamos todos egoístas, portanto. Temos que denunciar os crimes, possuir algo semelhante à humanidade para com as vítimas dos tiros da barbárie, porque os próximos serão,  quem sabe?

* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”.  Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.



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