quarta-feira, 27 de julho de 2016

Russland 3


* Por Urda Alice Klueger


(Para Márcio e Sandro, que eram meninos)


Desta vez, ao crepúsculo, eu caminhei em direção das Minas da Prata. Nem só em Potosi houve minas de prata na América – em Blumenau/SC, também as houve, e tomei o rumo delas, à tardinha, lembrando dos tempos em que era muito jovem, tinha meu primeiro fusca e vinha acampar diante das minas com minha irmã Margaret, mais os nossos vizinhozinhos Márcio e Sandro, garotos de primário, que estavam descobrindo a vida e aos quais eu ensinava a usar a imaginação, quando entravam de férias. É daquele tempo que me lembro das minas, já então abandonadas de há muito – como as de Potosi, sua prospecção se tornara antieconômica. Sobraram as bocas das galerias, e os túneis avistados lá dentro, pois era proibido entrar, por temor de desmoronamentos – mas havia toda uma magia ao ir-se lá – naquela altura, embalados pelos quadrinhos de Walt Disney, ficávamos a imaginar as minas do tio Patinhas. Éramos muito inocentes, então: não sabíamos dos 8.000.000 de índios mortos de fome e maus-tratos em Potosi. Mas lembro como qualquer pedra que se achasse no chão, podia ser quebrada com facilidade, e como o seu interior faiscava todo de veios de prata. O problema é que era muita pedra para pouca prata, o que fez os mineradores irem embora.

Tais minas estão a apenas três quilômetros desta pousada onde venho me abrigar, e quando saí, na tardinha, tinha a intenção de ir lá ver, e reviver, quem sabe...  Fiquei conversando com um velho morador que conhecia os Klueger, no entanto, durante tanto tempo, que quando fui vencer o último trecho do caminho, a noite caiu. Pelo que me disse uma outra rara moradora, eu estava chegando, mas voltei sem ir lá.

Há uns raros postes com lâmpadas acesas ao longo da estrada escura, muito distantes um do outro, e a estrada está mergulhada entre morros e ladeada de nascentes que se juntam num rio, e mesmo sendo de quarto crescente esta noite fria, em algumas curvas, onde as árvores eram muito altas, a escuridão era total, e eu acabei montando na minha imaginação e viajando no Tempo.

Um dia também anoitecera ali, naquele lugar, quando um antigo povo ia por ali passando, e todos, homens, mulheres e crianças procuraram logo o lugar mais abrigado para passar a noite. Pensei: e se estivesse chovendo torrencialmente? Conheceriam os antigos moradores alguma gruta, alguma cova, algum abrigo onde se enfiar? Hoje a geografia está toda alterada por conta do colonizador – como teria sido um dia? Os abrigos estariam por ali desde tempos imemoriais, ou seriam construídos rapidamente, como aqueles que Sílvio Coelho dos Santos nos conta em Índios e Brancos no Sul do Brasil? Água não faltaria: aquelas nascentes todas e aquele rio estavam ali, decerto, há MUITO tempo!

Numa dessas curvas bem escuras, fui ultrapassada por uma van que transporta estudantes, e fiquei ali olhando como ela se escondia no breu de mais adiante, onde suas luzes traseiras vermelhas se multiplicavam muitas vezes na escuridão.
- Como uma fogueira! – pensei. Sim, devia ser a mesma sensação – um grupo humano andando por ali – pois aquele caminhozinho provavelmente um dia foi uma trilha entre as nascentes e o rio – e alguém mais atrasado chegando no escuro, quando a fogueira já estava acesa! Foi como se visse lá, ao abrigo do fogo, os adultos e as crianças cozinhando e se preparando para passar a noite, e a grande sensação de conforto que sentiu quem vinha chegando atrasado, pois lá no fogo haveria abrigo, solidariedade, comida. Talvez fosse frio como hoje e as pessoas estivessem usando suas mantas de fio de urtiga, como há uma lá no Museu da Família Colonial, mas não chovia naquela noite da minha imaginação.
Há coisas que devem ser atávicas dentro da gente: eu era capaz de sentir cada sensação daquela pessoa de muito tempo atrás avistando o conforto daquela fogueira no meio da escuridão de breu.

Há que andar muito mais por este lugar que hoje chamam de Nova Rússia, pois aqui os vestígios da História ainda podem ser tão visíveis, tão visíveis! Basta a gente ter olhos de querer ver e atavismo no coração!

Blumenau, 13 de Maio de 2008.

* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de vinte e quatro livros (o 24º lançado em 5 de maio de 2016), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12 edições).



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