sexta-feira, 29 de julho de 2016

Ao homem selvagem

* Por Sousa Caldas


Ó homem, que fizeste? tudo brada:
Tua antiga grandeza
De todos se eclipsou; a paz doirada,
A liberdade com ferros se vê presa,
E a pálida tristeza
Eu teu rosto esparzida desfigura
De Deus, que te criou, a imagem pura.

Na cítara, que empunho, as mãos grosseiras
Não pôs cantor profano;
Emprestou-ma a verdade, que as primeiras
Canções nela entoara; e o vil engano,
O erro desumano,
Sua face escondeu espavorido,
Cuidando ser do mundo em fim banido.

Dos céus desce brilhando
A altiva independência, a cujo lado
Ergue a razão o cetro sublimado,
Eu a ouço ditando
Versos jamais ouvidos: reis da terra,
Tremei à vista do que ali se encerra.

Que montão de cadeias vejo alçadas
Com o nome brilhante
De leis, ao bem dos homens consagradas.
A natureza simples e constante,
Com pena de diamante,
Em breves regras escreveu no peito
Dos humanos as leis, que lhes tem feito.

O teu firme alicerce eu não pretendo,
Sociedade santa,
Indiscreto abalar; sobre o tremendo
Altar do calvo tempo, se levanta
Uma voz que me espanta,
E aponta o denso véu da antiguidade,
Que à luz esconde a tua longa idade.

Da dor o austero braço
Sinto no aflito peito carregar-me,
E as trêmulas entranhas apertar-me.
Ó céus! Que imenso espaço
Nos separa daqueles doces anos
Da vida primitiva dos humanos!

Salve dia feliz, que o loiro Apolo
Risonho alumiava,
Quando da natureza sobre o colo
Sem temor a inocência repousava,
E os ombros não curvava
Do déspota ao aceno enfurecido,
Que inda a terra não tinha conhecido.

Dos férvidos Etontes debruçado
Nos ares se sustinha,
E contra o tempo de furor armado,
Este dia alongar por glória tinha;
Quando nuvem mesquinha
De desordens seus raios eclipsando,
A noite foi do averno a fronte alçando.

Saiu do centro escuro
Da terra a desgrenhada enfermidade,
E os braços com que, unida à crueldade,
Se aperta em laço duro,
Estendendo, as campinas vai talando,
E os míseros humanos lacerando.

Que augusta imagem de esplendor subido
Ante mim se figura!
Nu; mas de graça e de valor vestido
O homem natural não teme a dura
Feia mão da ventura:
No rosto a liberdade traz pintada
De seus sérios prazeres rodeada.

Desponta cego amor, as setas tuas:
O pálido ciúme,
Filho da ira, com as vozes suas
Num peito livre não acende o lume.
Em vão bramindo espume,
Que ele indo apôs a doce natureza
Da fantasia os erros nada preza.

Severo volteando
As asas denegridas, não lhe pinta
O nublado futuro em negra tinta
De males mil o bando,
Que, de espectros cingindo a vil figura,
Do sábio tornam a morada dura.

Eu vejo o mole sono sussurrando
Dos olhos pendurar-se
Do frouxo caraíba que, encostando
Os membros sobre a relva, sem turbar-se,
O sol vê levantar-se,
E nas ondas, de Tétis entre os braços,
Entregar-se de amor aos doces laços.

Ó razão, onde habitas?... na morada
Do crime furiosa,
Polida, mas cruel, paramentada
Com as roupas do vício; ou na ditosa
Cabana virtuosa
Do selvagem grosseiro!... Dize... onde?
Eu te chamo, ó filósofo! Responde.

Qual o astro do dia,
Que nas altas montanhas se demora,
Depois que a luz brilhante e criadora,
Nos vales já sombria,
Apenas aparece; assim me prende
O homem natural; e o estro acende.

De tresdobrado bronze tinha o peito
Aquele ímpio tirano,
Que primeiro, enrugando o trovo aspeito,
Do meu e teu o grito desumano
Fez soar em seu dano:
Tremeu a sossegada natureza,
Ao ver deste mortal a louca empresa.

Negros vapores pelo ar se viram
Longo tempo cruzando,
Té que bramando mil trovões se ouviram
As nuvens entre raios decepando
Do seu seio lançando
Os cruéis erros, e a torrente ímpia
Dos vícios, que combatem, noite e dia.

Cobriram-se as virtudes
Com as vestes da noite; e o lindo canto
Das musas se trocou em triste pranto.
E desde então só rudes
Engenhos cantam o feliz malvado,
Que nos roubou o primitivo estado.


* Sacerdote, poeta e orador sacro, membro da Academia Brasileira de Letras.

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