quinta-feira, 21 de julho de 2016

O que é a caverna de Platão? Pare de teimar em errar!


* Por Paulo Ghiraldelli Jr.


O mito da caverna ou alegoria da caverna não faz nenhum estudante aprender a teoria das formas de Platão.

Platão mesmo disse: filósofos vivem a filosofia, quem não é filósofo, e nunca será, que fique então com um prêmio-consolação, uma alusão à vida do filósofo, ou seja, contente-se com a conversa sobre a caverna. É isso que está na obra A República. Vários professores se esquecem de que se trata de um recurso didático. (E pior ainda é quando acham que Saramago entendeu o caso!)

Além desse problema, há ainda outro. Alguns professores, não contentes com o fato da própria alegoria já ser uma alegoria, querem “atualizá-la”. Fazendo isso, não raro, induzem ainda mais a erros. Um dos casos mais frequentes é o de tornar a alegoria da caverna um simples similar do que ocorre na TV. Isso até pode ser feito, mas não como explicação do mito, e sim como uma construção a mais, paralela. Uma construção a mais, e desnecessária.

A teoria das formas de Platão diz que há um mundo inteligível, de essências existentes, e um mundo sensível, claro, também existente. (1) Ou seja, ambos os mundos têm status ontológico. Eles existem, e não dependem de nós, ainda que, para nominá-los, utilizemos expressões que são atinentes a nós, ou seja, o que é atingido pelo intelecto e o que é atingido pelos sentidos. Essa forma de falar não pode nos enganar, não devemos agir de modo moderno e pressupor aí uma subjetividade, uma instância humana, e então traduzir o mundo inteligível como sendo o dos conceitos e o mundo sensível como sendo o do corpo. Platão não pensa assim. Ele não trabalha com a noção de sujeito e muito menos com a noção de sujeito acoplada ao homem como indivíduo. Aliás, essa uma das grandes diferenças entre o pensamento antigo e o pensamento moderno. Como Sloterdijk diz: na modernidade o homem passa a ser o indivíduo e este se imagina mais real que tudo que o rodeia. Platão está fora disso (mais detalhes sobre a alma em Platão: Sócrates: pensador e educador. São Paulo: Cortez, 2015).

Desse modo, quando falamos da produção de imagens no fundo da caverna, ou da produção de imagens na tela da TV, para simular o que é da ordem sensível e não da ordem inteligível, caso não tenhamos explicado antes para o estudante que o problema inicial não é o da ilusão ou, modernamente, o da ideologia, de nada adianta. Caso ele absorva a narrativa, seja a da alegoria da caverna quanto a do exemplo da TV, segundo um esquema em que há um homem individual que tem de resolver coisas por meio só do intelecto que pensa conceitos em sua cabeça, e que este homem é o que tem no olho do seu rosto, do seu corpo, a visão das coisas, então tudo estará perdido. Platão, eu insisto, não trabalha no esquema moderno da relação sujeito-objeto.

Mas o exemplo da TV é pior que o exemplo da caverna. Platão ainda é o melhor didata de sua própria filosofia. A caverna é do âmbito cósmico. Ela é, digamos, o mundo. Ninguém a preparou para ser enganadora, ela apenas é como é. O mundo é como é. Além do mais, os homens que carregam objetos cuja sombra é projetada na parede da caverna não estão ali como homens enganadores, mas como elementos da própria caverna, ou seja, dados cósmicos. Quando se substitui a caverna pela TV, aparecem os produtores de imagens, ou seja, os homens da mídia, como os que produzem “meras imagens” e, então, como intencionalmente enganadores. Não há isso em Platão! Assim, o exemplo da TV joga para um tipo de teoria da conspiração ou, no melhor dos casos, para uma teoria da ideologia, no sentido moderno, o que também, não raro, induz a erro (não é lugar aqui de desenvolver algo sobre ideologia, já feito em outros textos e livros).

Quando Platão dá outros exemplos que não o da caverna, as coisas melhoram. Ele mostra um dedo e, em seguida, mostra outro dedo e diz: o primeiro dedo é grande (tem uma grandeza), o segundo dedo é grande (tem uma grandeza, com outro tamanho, mas é uma grandeza), e então eu tenho dois “grandes”, mas cadê o terceiro? Cadê o Grande, o grande que dá a origem (causa) e existência (sentido) ao grande que está no primeiro dedo e ao grande que está no segundo dedo? Cadê o grande não-sensível, e sim inteligível? Essa é a pergunta. O filósofo sabe onde o Grande está. Sabe de seu mundo. O não-filósofo não sabe e nunca saberá. Então, para ele ter a ideia do que é ficar só no grande sensível, se faz a alusão ao que é ser enganado quando se fica só no sensível por meio do engano de quem fica só nas imagens.

Essa é a ilusão metafísica. Fica-se no grande dos dedos, e não se acha o Grande, o que está entre os dedos, em algum lugar – tem que estar (!). Essa ilusão metafísica é uma ilusão meta-física, para além da física. Na física, no sensível, temos a grande de um dedo e de outro. Essa ilusão é da vida, do mundo, da condição da Terra e do homem. Não uma ilusão perceptiva ou uma ilusão criada por outros homens. Mesmo o filósofo, que adentra o mundo inteligível para contactar com o Grande, ainda assim, uma vez vivo, está neste mundo aqui, onde o grande existe (se manifesta) como grande de um dedo e grande de outro dedo.

Em Platão, ainda não se fala o que irá se falar a partir de Aristóteles, do Grande como um universal, como um conceito, e os “grandes” dos dedos como o objeto empírico do conceito – os dedos grandes. Muito menos se estaria a falar, como também não é o caso de Aristóteles, de um sujeito individual que detém conceitos e que vê fora deles, para serem apanhados e conceituados, os objetos empíricos. Em outras palavras: não é o homem que causa o erro metafísico, a ilusão metafísica, ela é da condição da vida no cosmos, no mundo, não de uma exclusiva condição humana. Errar não é humano – essa é a lição de Platão. Para o homem comum, que não é filósofo, não há o que se preocupar, pensa Platão, ainda que, para Sócrates, seria muito bom que cidadãos atenienses soubessem sim do que estavam falando.

É mais fácil explicar isso tudo por meio da alegoria da caverna que por meio da TV. Ainda que, cá entre nós, em ambos os casos, não raro, ensinamos errado a Teoria da Formas. Percebeu agora? Ou ainda não?

(1) Um terceiro é apresentado no Timeu, que é khora, o elemento – receptáculo – de transição entre o inteligível que é responsável pelo sensível.

PS 1: Algumas pessoas me escrevem dizendo que às vezes falo de alguém, que está errando em filosofia, e que depois não aponto o erro. Não é verdade. Aponto o erro e, não raro, dou nomes aos bois. Só que não fico só fazendo isso na vida, tá? Então, se digo algo como “fulano de tal está falando coisa errada”, ora, o leitor que investigue. Nesse texto de hoje, mostro um erro comum de muitas pessoas que falam na mídia, jornalistas, professores de filosofia etc. Agora, leitor, é com você, tá? Trabalhe um pouco também. E não venha chorar no meu blog quando descobre que o tal professor ou jornalista que você lê está fazendo coisa errada. Chore sozinho, para você e por você. E então, após enxugar as lágrimas, saia dessa, para de ler o errado porra!


* Filósofo.

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